Sebastião sim, gostava, imprimia de si folhetos.
Aqueles bonitos versos sobre a aluída Torre de Santa Cruz.
Aquela pagela tão singela sobre os filhos de Inez com Pedro.
Aquela verrina hílare sobre os desmandos da Câmara.
134.
MAIS QUE CONTAR
Coimbra, sábado, 5 de
Setembro de 2020
I
Acabava-se a manhã, dourado era o ar.
Grande ourivesaria era a luz dando o mundo.
Tudo era presença, até esquecer contava.
E nós todos éramos um só de cada vez.
Então era outro quando, logo outrora.
Tudo ciciava de si volver-se cantilena.
Esponsais & velórios conviviam coevamente.
Os já avoengos sorriam & calavam fundo.
Era deveras cristalino o ribeiro impoluto.
Levadas de canas refrigeravam o vento mesmo.
Próspero & gordo, o rebanho tocado por Moisés.
Não juntava as letras, o medo a lobos sim.
Quereis mais Vos diga? Está muito bem.
A lúbrica Anselma, uma ao mês ia à vila.
Sete filhos de doze pais criou ela em casa.
Não havia que se lhe dissesse, er’ela muito de si só.
Saíra já a estudos médicos daqui o Rufino.
O pai-merceeiro era ovante de seu rapaz.
Que desgraça mofina, a de Rufino em Coimbra!
Amancebou-se com homem, voltou nunca mais.
Começavam então no vale a auto’strada.
Grandes máquinas ladravam todo o santo dia.
Abriu de cabeleireira a Fátima do Lopes.
Morreu o padre-velho, que viera de Mira.
Mui bem de tudo isto antes, éramos nada.
Outras infâncias regiam a povoada solidão.
Pai & Mãe não haviam amado tal que nascêramos.
Éramos só cosmos, mais céu que terra, nem ossos.
Bito Pratas, nosso flautista, comprara mota.
J’ão Nero rufava tarola a preceito na festa.
Normando sonhava de baba com Anselma.
Rondava-lhe o pátio, vinha-se ao luar.
Anos levaram a derradeira criança.
Fecharam a escola por falta de freguesia.
Pusemo-nos assim tal morrendo devagar.
O ribeiro tossia já bolhas de plástico.
Fizera-se a barragem, inaugurada a regata.
Era um pano azul atirado ao verde.
Domingos, lá íamos à pesca da carpa.
Pescávamos muito pouco, dia era bem vivido.
Receio ter amado pouco & mal, ninguém me ficou.
Ainda me não chegou o último hoje.
Serei como estas linhas uma sombra queimada ontem.
Quem quiser, nisto pegue, sempre há mais que contar.
II
Estação-de-serviço. Sol a pino. Setembro.
Rapariga à moda, chinelinhas preciosas.
Carrinha-frigorífica, peixe embalsamado a gelo.
Ligeiro escândalo: cai cardíaco-fulminado um velho.
Pastelaria de nome Bocage. Coca-cola. Empadas.
Fumar, só na rua. Como os cães, que aliás nem fumam.
Beleza peremptória do mundinho à mão.
Atrelada a caniche, lá vai a professorinh’aposentada.
Deus nos livre de tanto sal na ração.
A gente p’r’aqui anda – e desanda em um nada.
Prédio pintado a rosa-forte. Ali mora Filomena.
R/c do dentista. Frutaria. Gato à janela.
Cedro bonito. Mulheraça de calção-neve. Mais empadas.
Pimpão, o gajo dos seguros em seu land-rover.
Sacadas de pão da ração para os pobres.
Aguardo na fila como ordeiramente os outros.
Quer a senhora uma bela limonada?
A tarte-cereja está hoje um primor.
Rebelo Cirurgião está de abalada.
“Perde a estrela d’alva o seu fulgor.” (*)
(*) Linha de José Afonso.
(...)
IV
Tenro arvoredo
Ternas águas mornas
Em paz & sossego
Andam aves calmas
Ninguém mui cuidou
Mas a vida avisa
Que não é precisa
Nem ressuscitou
Extingue-se a chama
Que era de furor
Do lunar palor
Treva se reclama
Deixa tu, menino
Ir fluindo a barca
E a manhã se perca
Como é de destino.
V
Conhece o teu nome
Data que te deram
Que o Tempo não é
Leão que se dome
Em simples canteiro
Rosa-assinatura
Frio de Janeiro
Se atém na procura
Conta menos vezes
Quantos dias faltam
E nos entremezes
Vê se as pulgas saltam
Deixa-te, menina
Ir fluindo à foz
E a noite mansinha
Dará nome a nós.
VI
Sebastião na dá sinal de vida há treze meses.
Se optou ou não por rumar a Sul, sabe-se nada.
Tinha tossido sangue no outro inverno.
Desavindo com o irmão, não se sabe mais que isso.
A via dele é inçada de apostas perdidas por ambas as partes.
(Via ou vida, dá no mesmo, nem gralha é.)
Fumou ervas inomináveis ’té p’los botânicos.
E geriu a melhor tipografia cá do burgo.
Deu depois de si mostrando-se de pijama na rua.
A barba muito farpada, os lábios arroxeados.
Os pés escalavrados, aquele coração bolçando pus.
Três meses de sanatório sem aquento nem arrefento.
O irmão, que é Gonçalo, nem tuge nem muge.
Faz de conta que aquele nunca nasceu.
Passou a tipografia, não se sabe de que renda vive.
É abstruso & simiesco – nem de livros gosta.
Sebastião sim, gostava, imprimia de si folhetos.
Aqueles bonitos versos sobre a aluída Torre de Santa Cruz.
Aquela pagela tão singela sobre os filhos de Inez com Pedro.
Aquela verrina hílare sobre os desmandos da Câmara.
Receamos que tenha morrido.
Receamos por igual que tenha sobrevivido.
Receamos saber como tememos ignorar.
Mas não somos todos sebastianistas?
VII
Aurora é senhora de sua eira há muito desfolhada.
Foi tempo já, que não retorna, de os homens serem homens.
Aurora faz hoje de biberão a dois jovens,
afilhados lhes chama ela, madrinha a mais honrada.
Nunca leu o cabrão dum livro, Deus no-la conserve.
Acha piada a poetas, acha burros até os médicos.
Os dentes com que não sorri – são protésicos.
E varizes a encordoam. Nada mais há que a enerve.
Afinal santa – ou de tal próxima.
Amadora de gatos, profissional de sozinha.
Cultora de orquídeas – e da rosa anónima.
Gosta de vinho-branco, que mama a sós na cozinha.
Anos revolvem mais lixos, não desarma Aurora.
O Tancredo, que é parvo, ronda-lhe a presença.
Ela funga à gata, tigre de nascença.
E atira-lhe gumes no instante da hora.
Gosta de formigas, não as fumiga nem corre.
Já teve uma rôla que sabia uivar.
Lavou Coimbra-B. Agora a socorre
a meia-pensão do que quis descontar.
Aurora nunca foi de Sebastião.
Quase me estraga o livro tal desunião.
Mas ele há que escrever – e, ’screvendo, teimar
em que alguma vida bem há-de contar.
Sem comentários:
Enviar um comentário