02/11/2020

VinteVinte - 103 (I a V)




103.

 

ESTE TIPO DE DOCUMENTOS

 

Coimbra, sexta-feira, 17 de Julho de 2020

Coimbra, sábado, 18 de Julho de 2020

 

 

I

 

Secreta mola algures algum mecanismo acciona – e eis que o portador do mecanismo se vê acordado, desta vez estranhamente tão tarde, sendo já as sete da manhã nova. A besta calorífera já tomou o mundo, cerca esta casa já. Alguma beleza, há que demandá-la sem daqui sair. Impossível, sair. Mortífero, sair. Port’afora, a doença do Verão mata velhas & desvaria novos. Todo o cuidado parece ser nenhum. Jules M. beija a mulher, promete não se esquecer de passar pelo sapateiro Tobias, nem de telefonar a quem, querida?, claro, a Vicente Teodoro Gago por causa daquilo esquisito na parede do nosso conjugado quarto conjugal. E sai sem medo para a moléstia da Cidade.

 

II

 

Eu é que não, de modo algum. Internas ruas & jardins interiores tenho à disposição do verbo imaginante. Um lago amplo, mas não demasiado, em sopé de pico nevado. Botes ao dispor dos hóspedes da pensão. Digamos que em, quê?, 1908. Antes das duas brutas guerras. Na esplanada corrida a painéis de vidro altos, a senhora austríaca tilinta de colherinha de prata seus preciosos sais solutos. Isto é na mesa verde. Na violeta, o senhor major digere proboscideamente sua aveia. Daqui a seis anos já o não chamarão, pois que devolve em 1914 a alma ao Criador. Preside à toalha azul-cinza a minha pessoa mesma. Mandei vir costeletinhas de borrego limonadas com pimenta & batatinhas salteadas, espargos, doce de mirtilo, café, conhaque velho – abadeo-me, pois. Já não é difícil, sequer precário, saber que o correio semanal carta alguma me terá por destino.

 

III

 

Anos volvidos, Miguel Copa é que sim, recebe muita epístola. Leva em boa ordem o expediente da sua vida acordada. A existência dele não é por marés. Quieta laguna, antes sim. Faz por não gastar história, o bom Miguel. É comensal das irmãs Capela. As cartas são comerciais elas todas, à excepção das da academia de xadrez por correspondência. Invejável celibato sem problemas nem soluções. Em vão a Lua lhe roça as janelas. O senhor Copa gostou, sim, é certo, de uma manceba – mas isso foi durante a segunda das mais feras guerras do século. Leite macérrimo deu tal rês, digo, tal romance. Nem da moça resta nome. Talvez em algum sonho de quando chegar a velho, não por ora.

 

IV

 

Por ora, coze na panela média um bom naco de vaca gorda. Quando a cocção estiver a três quartos, é afluir-lhe feijão, uma batata, uma cenoura, um nabo, a couve pequena. A cebola já lá mora desde a vaca. Vai trepidando a ventoinha, ondulando a baforada morna, o ar estancado, o estio endémico. O cozido, é certo, é para comer quente – mas não muito quente. Pressa nenhuma, o Natal não vem tão cedo. O justo, o assisado – é recolher do canteiro da estante a rosa fácil de um Walter Scott em carneira grená, ou um Herculano epistolar, um Garrett rapsodo, mesmo um Sampaio Bruno da fase mais atarantada. Uma vez que se retorne, de fugida embora, ao mundo, então será de trazer uma boa broa, um cacho serpentino de nigérrimos húmidos negritos. E sabão azul, que está de resto aqui no castelo. Ah!, e naftalina para a gaveta das fotografias.

 

V

 

Uma das fotografias agrega o doutor Idílio Cortesão, director da revista Relance, as primas Oliveira Medina (Filomena & Natalina), o incorrigível Carlos Rouxinol & a criada-de-mesa Dulce Padinha, que depois se ajuntou ao viúvo Taborda da Labor Seguradora. A bebida-de-mesa é vinho do Porto para todos. Um prato de biscoitos-de-canela. Os dois homens fumam: Carlos, cigarros louros; o doutor, cachimbo. Fátima não sorri, ao contrário da prima, que sempre achou graça ao Carlos. É sobre este tipo de documentos que detenho alguma autoridade – se a palavra não é demasiado substantiva, talvez o seja. Conheci toda a gente. E, como quase toda a gente, também eu comerciei carnalmente com a Dulce. Com as primas não, que ainda hoje são duas santas, Deus as vá guardando virgens como cornos.


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Canzoada Assaltante