103.
ESTE TIPO DE DOCUMENTOS
Coimbra, sexta-feira,
17 de Julho de 2020
Coimbra, sábado, 18 de
Julho de 2020
I
Secreta
mola algures algum mecanismo acciona – e eis que o portador do mecanismo se vê
acordado, desta vez estranhamente tão tarde, sendo já as sete da manhã nova. A
besta calorífera já tomou o mundo, cerca esta casa já. Alguma beleza, há que
demandá-la sem daqui sair. Impossível, sair. Mortífero, sair. Port’afora, a
doença do Verão mata velhas & desvaria novos. Todo o cuidado parece ser
nenhum. Jules M. beija a mulher, promete não se esquecer de passar pelo
sapateiro Tobias, nem de telefonar a quem, querida?, claro, a Vicente Teodoro
Gago por causa daquilo esquisito na parede do nosso conjugado quarto conjugal.
E sai sem medo para a moléstia da Cidade.
II
Eu
é que não, de modo algum. Internas ruas & jardins interiores tenho à
disposição do verbo imaginante. Um lago amplo, mas não demasiado, em sopé de
pico nevado. Botes ao dispor dos hóspedes da pensão. Digamos que em, quê?,
1908. Antes das duas brutas guerras. Na esplanada corrida a painéis de vidro
altos, a senhora austríaca tilinta de colherinha de prata seus preciosos sais
solutos. Isto é na mesa verde. Na violeta, o senhor major digere
proboscideamente sua aveia. Daqui a seis anos já o não chamarão, pois que
devolve em 1914 a alma ao Criador. Preside à toalha azul-cinza a minha pessoa
mesma. Mandei vir costeletinhas de borrego limonadas com pimenta &
batatinhas salteadas, espargos, doce de mirtilo, café, conhaque velho –
abadeo-me, pois. Já não é difícil, sequer precário, saber que o correio semanal
carta alguma me terá por destino.
III
Anos
volvidos, Miguel Copa é que sim, recebe muita epístola. Leva em boa ordem o
expediente da sua vida acordada. A existência dele não é por marés. Quieta
laguna, antes sim. Faz por não gastar história, o bom Miguel. É comensal das
irmãs Capela. As cartas são comerciais elas todas, à excepção das da academia
de xadrez por correspondência. Invejável celibato sem problemas nem soluções.
Em vão a Lua lhe roça as janelas. O senhor Copa gostou, sim, é certo, de uma
manceba – mas isso foi durante a segunda das mais feras guerras do século.
Leite macérrimo deu tal rês, digo, tal romance. Nem da moça resta nome. Talvez
em algum sonho de quando chegar a velho, não por ora.
IV
Por
ora, coze na panela média um bom naco de vaca gorda. Quando a cocção estiver a
três quartos, é afluir-lhe feijão, uma batata, uma cenoura, um nabo, a couve
pequena. A cebola já lá mora desde a vaca. Vai trepidando a ventoinha,
ondulando a baforada morna, o ar estancado, o estio endémico. O cozido, é
certo, é para comer quente – mas não muito quente. Pressa nenhuma, o Natal não
vem tão cedo. O justo, o assisado – é recolher do canteiro da estante a rosa
fácil de um Walter Scott em carneira grená, ou um Herculano epistolar, um
Garrett rapsodo, mesmo um Sampaio Bruno da fase mais atarantada. Uma vez que se
retorne, de fugida embora, ao mundo, então será de trazer uma boa broa, um
cacho serpentino de nigérrimos húmidos negritos. E sabão azul, que está de resto
aqui no castelo. Ah!, e naftalina para a gaveta das fotografias.
V
Uma
das fotografias agrega o doutor Idílio Cortesão, director da revista Relance,
as primas Oliveira Medina (Filomena & Natalina), o incorrigível Carlos
Rouxinol & a criada-de-mesa Dulce Padinha, que depois se ajuntou ao viúvo
Taborda da Labor Seguradora. A bebida-de-mesa é vinho do Porto para todos. Um
prato de biscoitos-de-canela. Os dois homens fumam: Carlos, cigarros louros; o
doutor, cachimbo. Fátima não sorri, ao contrário da prima, que sempre achou
graça ao Carlos. É sobre este tipo de documentos que detenho alguma autoridade
– se a palavra não é demasiado substantiva, talvez o seja. Conheci toda a
gente. E, como quase toda a gente, também eu comerciei carnalmente com a Dulce.
Com as primas não, que ainda hoje são duas santas, Deus as vá guardando virgens
como cornos.
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