Uma manhã antigamente nova chega
tarde
III
Em tua honra posso também versos simples
Não os leias como uma história mas muitas
Ou então como nenhuma, imagens tão-só
De alheios crimes como de íntimas inocências
E aqui aplica-se bem o nosso velho versa-vice
Ou o vício do verso que nos abandona (a) jamais
Em certa pensão aniquilada mora noites o traficante
Digo: não de droga mas de enciclopédias
Esses formosos monstros que já ninguém quer
Belos comboios de palavras que ninguém apanhou
Queres sempre um nome que torne una a pessoa
É o traficante um Heitor Luiz Torres Franco
Há muito o sei perdido de toda a esperança
Falhou nele a rotina das gerações terrenas
Sendo-lhe agora íntima a aérea dispersão
Heitor é uma história
Luiz é outra
Torres é outra
Franco embrulha as outras três
Levemo-lo a jantar em viela próxima da pensão
Prepara-se para sair, já enverga o casaco
No cortinado sebento de moscas reverbera a verde
A cruz & as letras da FARMÁCIA BOTELHO
Tudo isto perto da estação ferroviária central
Na casa-de-pasto outros desprovidos heitores
Desprovidos de qualquer irrisória esperança, digo
Pastam a tenra isca-de-cebolada
O miúdo carapau frito com feijão-frade
Não façamos cada um lembrar-se das filhas
Isso tal deles faria manás lacrimosos
Evitemos isso tal como o diabo a cruz
Como velas negras sobem os frascos de vinho
É recatado sítio, não tem felizmente televisor
Cada cabeça vê por dentro sem filme
Olha tu que nem numero o ano nem a década firmo
Se quiseres, é Coimbra; não querendo, seja alhures
No fundo como à flor, o verso é soberano
Deixemos em cenáculo sossego a Heitor
E caminhemos um pouco por a beira-rio
A treva tomou a corrente lenta
Pirilampos chegam dos lampiões às águas
Da outra banda rumoram salgueiros-da-babilónia
Anota apenas que isto não é o presente
Isto é o cu do porvir, nem pretérito chega a ser
Somos de nós mesmos os espectros já anónimos
A arte poética concede-nos espelhos volantes
Alto é o convento onde cheira à relíquia óssea da santa
Abandonemo-nos porém por ora ainda
Da colina onde se erguia o Arco Romano, além
Dessa colina formigavam descendo & subindo
As empregaditas de pastelarias & retrosarias
Os doutores esfaimados da Torre provindos
Os pintores perturbados, o oleiro solitário
Este oleiro é Emanuel José Anes Leopoldo
Nas mãos dele o barro é uma mulher fresca
Vários, que não poucos, tem ele filhos
Que ele acalenta como pode & sabe nos invernos longos
A mãe da prole é Noémia dos Santos Leopoldo
Se há força humana algures, Algures se chama Noémia
Podem as estações corromper as mulheres
Pode o rio ser chilro & insosso de aguadilha
Tudo pode tudo, desde que a fome a meus filhos evite
Que lhes não reconheça os nomes lindos
Marta-Samuel-Josefa-Raul-Jaime-Filinto-Emanuel-II
Uma manhã antigamente nova chega tarde
O dia há-de vir – e já veio – em que ninguém conta
Ninguém importa, ninguém releva
Um dos meninos viu na montanha a raposa
No monte o coelho, no mesmo a serpente
A cadela chamada Cuca era quadrúpede maravilha
Farejava ouriços invisíveis, até aves cobiçava
Espera um pouco agora, regressemos
Volvamos mas para a infância não voltemos
Não viremos sequer os olhos, não por ora
Já Heitor Luiz é capaz de haver jantado ou ceado
Já na pensão procura o sono arredio
Este mês ainda não vendeu uma Luso-Brasileira
No mês passado vá que vendeu duas Collier’s
A pobreza promete devir miséria
Nem por isso o suicídio o aflora tentador
Não ao menos por ora, que dele não é hora
Oxalá consiga ele dormir enquanto tu & eu velamos
Tu que nem precisas de existir p’ra que eu r-exista
És afinal tão-só o ponto-de-honra da dedicatória
Envelheceste mal, nem nome usas, sequer abusas
Mas mal (já) não faz, Heitor & Emanuel são embora talvez em vão
De muitos mais poderia recado ainda dar-te
Que para tal me não escasseiam engenho & arte
Tenho passado a vida a passar a vida nisto
Não é agora que vou abdicar da derradeira pérola
Por mais seja a porcos que a venha atirando
Ouçamos d’além o brando rumor de louça
A senhora lava do jantar os cacos domésticos
É Isaura, a senhora, Isaura Cândida Pinto
Remediada dona de remediada casa
Tem o marido adoentado de persistente indisposição
Começou Júlio a sentir-se zonzo haverá dois meses
Júlio Manuel Cidral Pinto, topógrafo-agrimensor
Ao avesso de Emanuel & Noémia, não co-geraram
Não são mãe & pai Isaura & Júlio
Breve há-de ser aquela viúva deste
É a lei das coisas, casaram-se contentes quando?
A um 5 de Agosto foi quando, isso eu sei
Júlio sabe como ninguém fruir o pedaço pós-prandial
Cachimbo, jornal, no cálice um dedo de conhaque
Junta-se-lhe sem barulho Isaura amailo bordado
Aprazível duração têm logrado respirar
Ar de um é do outro a respiração
Breve tão-só o bordado & a bordadora
Penélope que finalmente sabe sem retorno Ulisses
Júlio não acabou o conhaque e no entanto
E no entanto tudo é acabado, por assim dizer em paz
Atiro-te estas imagens mais talvez por desfastio
Mais talvez por desfastio do que sensatamente
És afinal o idílico não-ser das pastoras bucólicas
E Rodrigues Lobo não sou já, que o fui nunca
Mas deixemo-nos disto, tenho mais que (des)fazer afinal
Ainda não dissertei sobre o suicida A.F.S.
Augusto Fillipe Simões por extenso
Outro dia será se o meu viver lá chegará
Li esse senhor mormente nas pré-auroras
Anotei cada página, fruí o irremédio dele
Ele fez bem a Coimbra como bem fez a Évora
Não são porém estas as páginas para ele
Para ti também não são
Para mim também não
Confunde-se o teu rosto-nenhum com a cara de ninguém
Mas são afinal simples, como prometido, estes versos
Planos, pontos & linhas são facilmente discerníveis
A guerra é a guerra, Heitor não é Emanuel
Emanuel não é Júlio
Ninguém é mais alguém mas de alguém veio & vem
Assim foi com Cristina Clara, a Azul
Criatura de gráceis gímnicos aparatos
Pariu cedo & bem, de um mocetão, outro mocetão
É uma vida tipo casa-trabalho-trabalho-mercearia-casa
Renda paga até dia 8, salário até 31
A maturidade a apurou, direi mesmo que a depurou
Do primo viço cerúleo do olhar guarda lapsos
Engordou um pouquíssimo, tem amante
Este não tem porém nome fixo, pois vai mudando
Um amante dura-lhe em média oito meses
No Verão vai a casa dos pais com o júnior
O ex-marido está recasado acho que em Almada
Em Almada com uma mulata tipo sinhá
Talvez seja feliz, não sei, não vou para Almada
Cristina Clara já dançou três vezes no Astória
A gerência mandou entretanto encerrar o salão
Também nem o Coimbra Clube existe já
Nem o Asa Branca, nem o Recreativo Sport
Talvez nem Cristina passe de factícia factura
Não a seremos afinal todos, facturada ficção?
Decerto mas adiante, que a cama é estreita
A cama é estreita & a manta é curta
Alguns versos mais ou menos simples esperam vez & voz
És, mesmo inexistente, perspicaz
O diabo te trouxe mas ainda te não levou
Nem de mim ainda te arredou
O que resta de Europa autoaniquila-se
Mas estas linhas ainda não, longe disso
Visito amanhã a meu Irmão José
Até lá posso efabular quão fabulosamente possa
Aos poucos acumulo em livro a minha, quê?,
Acumulo em livro a minha dádiva de retorno
Há que ser grato aos avoengos mestres
Aos tristes mestres tigres silvestres
Camilo Pessanha, Cesário Verde, Sá de Miranda
Também o tal Rodrigues Lobo peregrinamente pastor
O régio Grande Zarolho Vaz de Camões
O pobre mitómano Botto, o pobre Esfinge-Sá-Gorda-Carneiro
Coitados todos, pintores uns quantos (poucos)
Músicos uns tantos (não muitos), haja enfim obras
Outra manhã ulterior nos felicitará, não esta
Lembrei-me hoje de te escrever para bandeja
Perdão, para te dar de bandeja ao benfazejo olvido
Tenho uma vela por estrear na noite por estrear
Hei ainda uma pouca de vinho & algum pão
Alguma banha, um pouco de fruta ainda
Pálido, reverbera o futuro, bem no sei de cor
E no entanto a simplicidade faz-se verso
E por isso, minimamente embora, algo resgata
Algo resgata & algo salva & a algo socorre
Só afinal quem nasce, morre
É a Velha-Boa-ou-Má-Lei-Mas-Lei
A Mesma-de-Sempre-desde-Sempre-para-Sempre
Como a que subjazeu ao moço Etelvino
Etelvino de Santamaria Bonifácio de Sá
Nunca trabalhou por ser demente
Moderado mas de mente dormente
Criou-se neste bairro sem deitar sombra ao chão
Pobre tolo manso, engravatado como o pai
Tudo quis & todo se quis como o pai
Quando o pai faleceu, temeu-se o pior
Temeu-se coisa má mas felizmente não
Ou Etelvino era mais lúcido do que se cria
Ou mais demente do que se queria
O certo é que foi vivendo, sempre de gravata
Sempre de casaco como o pai
Do pai aliás herdou os dois fatos & as quatro gravatas
Vi-o no ano passado mas em necronotícia já só
O óbito afixado no poste ao pé da busparagem
Lá mora o destino do Etelvino
Dorme na Conchada entre finalmente iguais
Seus pares sem diagnóstico mental nem gravata
Era da minha idade, mais velho oito meses
Quando digo que o conheci, minto por gentileza
Reconhecia-o, isso sim, pois ninguém
Ninguém conhece alguém, não deveras
O mais que pode alguém é tentar reconhecer
Assim fiz quando, no nada, te inventei
E à beira-berma-margem-banda-rio te levei
Quando ceava ou jantava então Heitor Luiz
O traficante enciclopédico de pouca-saída
Aquele que não tem por certos nem amor nem andor
Deve ser triste ser um homem, ser um homem triste
Outros (a maioria, Maria) são bestas felizes
Descuidosas do panorama editorial lusonacional
Impermeáveis ao Nobre, ao Pessoa, ao Osório, ao Belo
Rebanho mentecapto que s’apimbalha sôfrego
E eu, cuidoso & melindroso, sôbolos rios que não vão
E tu, pessoa de etérea aura, nem Noémia nem Isaura
Impossível é desejar-te as Boas Festas
Este Agosto arde a ferro há muito malhado
Sempre te dou por prenda ficares a saber que
Kierkegaard significa Adro-de-Igreja
Temor e Tremor pois não tremas ou temas
Conceber de gorduchos dá afinal macérrima provisão
E nunca os dias que foram firam os que virão
Mas não, ferirão, que por pura certeza é essa a sua natureza.
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