17/11/2020

VinteVinte - 123 (III)


Uma manhã antigamente nova chega tarde



III


Em tua honra posso também versos simples 
Não os leias como uma história mas muitas 
Ou então como nenhuma, imagens tão-só 
De alheios crimes como de íntimas inocências 
E aqui aplica-se bem o nosso velho versa-vice 
Ou o vício do verso que nos abandona (a) jamais 
Em certa pensão aniquilada mora noites o traficante 
Digo: não de droga mas de enciclopédias 
Esses formosos monstros que já ninguém quer 
Belos comboios de palavras que ninguém apanhou 
Queres sempre um nome que torne una a pessoa 
É o traficante um Heitor Luiz Torres Franco 
Há muito o sei perdido de toda a esperança 
Falhou nele a rotina das gerações terrenas 
Sendo-lhe agora íntima a aérea dispersão 
Heitor é uma história 
Luiz é outra 
Torres é outra 
Franco embrulha as outras três 
Levemo-lo a jantar em viela próxima da pensão 
Prepara-se para sair, já enverga o casaco 
No cortinado sebento de moscas reverbera a verde 
A cruz & as letras da FARMÁCIA BOTELHO 
Tudo isto perto da estação ferroviária central 
Na casa-de-pasto outros desprovidos heitores 
Desprovidos de qualquer irrisória esperança, digo 
Pastam a tenra isca-de-cebolada 
O miúdo carapau frito com feijão-frade 
Não façamos cada um lembrar-se das filhas 
Isso tal deles faria manás lacrimosos 
Evitemos isso tal como o diabo a cruz 
Como velas negras sobem os frascos de vinho 
É recatado sítio, não tem felizmente televisor 
Cada cabeça vê por dentro sem filme 
Olha tu que nem numero o ano nem a década firmo 
Se quiseres, é Coimbra; não querendo, seja alhures 
No fundo como à flor, o verso é soberano 
Deixemos em cenáculo sossego a Heitor 
E caminhemos um pouco por a beira-rio 
A treva tomou a corrente lenta 
Pirilampos chegam dos lampiões às águas 
Da outra banda rumoram salgueiros-da-babilónia 
Anota apenas que isto não é o presente 
Isto é o cu do porvir, nem pretérito chega a ser 
Somos de nós mesmos os espectros já anónimos 
A arte poética concede-nos espelhos volantes 
Alto é o convento onde cheira à relíquia óssea da santa 
Abandonemo-nos porém por ora ainda 
Da colina onde se erguia o Arco Romano, além 
Dessa colina formigavam descendo & subindo 
As empregaditas de pastelarias & retrosarias 
Os doutores esfaimados da Torre provindos 
Os pintores perturbados, o oleiro solitário 
Este oleiro é Emanuel José Anes Leopoldo 
Nas mãos dele o barro é uma mulher fresca 
Vários, que não poucos, tem ele filhos 
Que ele acalenta como pode & sabe nos invernos longos 
A mãe da prole é Noémia dos Santos Leopoldo 
Se há força humana algures, Algures se chama Noémia 
Podem as estações corromper as mulheres 
Pode o rio ser chilro & insosso de aguadilha 
Tudo pode tudo, desde que a fome a meus filhos evite 
Que lhes não reconheça os nomes lindos 
Marta-Samuel-Josefa-Raul-Jaime-Filinto-Emanuel-II 
Uma manhã antigamente nova chega tarde 
O dia há-de vir – e já veio – em que ninguém conta 
Ninguém importa, ninguém releva 
Um dos meninos viu na montanha a raposa 
No monte o coelho, no mesmo a serpente 
A cadela chamada Cuca era quadrúpede maravilha 
Farejava ouriços invisíveis, até aves cobiçava 
Espera um pouco agora, regressemos 
Volvamos mas para a infância não voltemos 
Não viremos sequer os olhos, não por ora 
Já Heitor Luiz é capaz de haver jantado ou ceado 
Já na pensão procura o sono arredio 
Este mês ainda não vendeu uma Luso-Brasileira 
No mês passado vá que vendeu duas Collier’s 
A pobreza promete devir miséria 
Nem por isso o suicídio o aflora tentador 
Não ao menos por ora, que dele não é hora 
Oxalá consiga ele dormir enquanto tu & eu velamos 
Tu que nem precisas de existir p’ra que eu r-exista 
És afinal tão-só o ponto-de-honra da dedicatória 
Envelheceste mal, nem nome usas, sequer abusas 
Mas mal (já) não faz, Heitor & Emanuel são embora talvez em vão 
De muitos mais poderia recado ainda dar-te 
Que para tal me não escasseiam engenho & arte 
Tenho passado a vida a passar a vida nisto 
Não é agora que vou abdicar da derradeira pérola 
Por mais seja a porcos que a venha atirando 
Ouçamos d’além o brando rumor de louça 
A senhora lava do jantar os cacos domésticos 
É Isaura, a senhora, Isaura Cândida Pinto 
Remediada dona de remediada casa 
Tem o marido adoentado de persistente indisposição 
Começou Júlio a sentir-se zonzo haverá dois meses 
Júlio Manuel Cidral Pinto, topógrafo-agrimensor 
Ao avesso de Emanuel & Noémia, não co-geraram 
Não são mãe & pai Isaura & Júlio 
Breve há-de ser aquela viúva deste 
É a lei das coisas, casaram-se contentes quando? 
A um 5 de Agosto foi quando, isso eu sei 
Júlio sabe como ninguém fruir o pedaço pós-prandial 
Cachimbo, jornal, no cálice um dedo de conhaque 
Junta-se-lhe sem barulho Isaura amailo bordado 
Aprazível duração têm logrado respirar 
Ar de um é do outro a respiração 
Breve tão-só o bordado & a bordadora 
Penélope que finalmente sabe sem retorno Ulisses 
Júlio não acabou o conhaque e no entanto 
E no entanto tudo é acabado, por assim dizer em paz 
Atiro-te estas imagens mais talvez por desfastio 
Mais talvez por desfastio do que sensatamente 
És afinal o idílico não-ser das pastoras bucólicas 
E Rodrigues Lobo não sou já, que o fui nunca 
Mas deixemo-nos disto, tenho mais que (des)fazer afinal 
Ainda não dissertei sobre o suicida A.F.S. 
Augusto Fillipe Simões por extenso 
Outro dia será se o meu viver lá chegará 
Li esse senhor mormente nas pré-auroras 
Anotei cada página, fruí o irremédio dele 
Ele fez bem a Coimbra como bem fez a Évora 
Não são porém estas as páginas para ele 
Para ti também não são 
Para mim também não 
Confunde-se o teu rosto-nenhum com a cara de ninguém 
Mas são afinal simples, como prometido, estes versos 
Planos, pontos & linhas são facilmente discerníveis 
A guerra é a guerra, Heitor não é Emanuel 
Emanuel não é Júlio 
Ninguém é mais alguém mas de alguém veio & vem 
Assim foi com Cristina Clara, a Azul 
Criatura de gráceis gímnicos aparatos 
Pariu cedo & bem, de um mocetão, outro mocetão 
É uma vida tipo casa-trabalho-trabalho-mercearia-casa 
Renda paga até dia 8, salário até 31 
A maturidade a apurou, direi mesmo que a depurou 
Do primo viço cerúleo do olhar guarda lapsos 
Engordou um pouquíssimo, tem amante 
Este não tem porém nome fixo, pois vai mudando 
Um amante dura-lhe em média oito meses 
No Verão vai a casa dos pais com o júnior 
O ex-marido está recasado acho que em Almada 
Em Almada com uma mulata tipo sinhá 
Talvez seja feliz, não sei, não vou para Almada 
Cristina Clara já dançou três vezes no Astória 
A gerência mandou entretanto encerrar o salão 
Também nem o Coimbra Clube existe já 
Nem o Asa Branca, nem o Recreativo Sport 
Talvez nem Cristina passe de factícia factura 
Não a seremos afinal todos, facturada ficção? 
Decerto mas adiante, que a cama é estreita 
A cama é estreita & a manta é curta 
Alguns versos mais ou menos simples esperam vez & voz 
És, mesmo inexistente, perspicaz 
O diabo te trouxe mas ainda te não levou 
Nem de mim ainda te arredou 
O que resta de Europa autoaniquila-se 
Mas estas linhas ainda não, longe disso 
Visito amanhã a meu Irmão José 
Até lá posso efabular quão fabulosamente possa 
Aos poucos acumulo em livro a minha, quê?, 
Acumulo em livro a minha dádiva de retorno 
Há que ser grato aos avoengos mestres 
Aos tristes mestres tigres silvestres 
Camilo Pessanha, Cesário Verde, Sá de Miranda 
Também o tal Rodrigues Lobo peregrinamente pastor 
O régio Grande Zarolho Vaz de Camões 
O pobre mitómano Botto, o pobre Esfinge-Sá-Gorda-Carneiro 
Coitados todos, pintores uns quantos (poucos) 
Músicos uns tantos (não muitos), haja enfim obras 
Outra manhã ulterior nos felicitará, não esta 
Lembrei-me hoje de te escrever para bandeja 
Perdão, para te dar de bandeja ao benfazejo olvido 
Tenho uma vela por estrear na noite por estrear 
Hei ainda uma pouca de vinho & algum pão 
Alguma banha, um pouco de fruta ainda 
Pálido, reverbera o futuro, bem no sei de cor 
E no entanto a simplicidade faz-se verso 
E por isso, minimamente embora, algo resgata 
Algo resgata & algo salva & a algo socorre 
Só afinal quem nasce, morre 
É a Velha-Boa-ou-Má-Lei-Mas-Lei 
A Mesma-de-Sempre-desde-Sempre-para-Sempre 
Como a que subjazeu ao moço Etelvino 
Etelvino de Santamaria Bonifácio de Sá 
Nunca trabalhou por ser demente 
Moderado mas de mente dormente 
Criou-se neste bairro sem deitar sombra ao chão 
Pobre tolo manso, engravatado como o pai 
Tudo quis & todo se quis como o pai 
Quando o pai faleceu, temeu-se o pior 
Temeu-se coisa má mas felizmente não 
Ou Etelvino era mais lúcido do que se cria 
Ou mais demente do que se queria 
O certo é que foi vivendo, sempre de gravata 
Sempre de casaco como o pai 
Do pai aliás herdou os dois fatos & as quatro gravatas 
Vi-o no ano passado mas em necronotícia já só 
O óbito afixado no poste ao pé da busparagem 
Lá mora o destino do Etelvino 
Dorme na Conchada entre finalmente iguais 
Seus pares sem diagnóstico mental nem gravata 
Era da minha idade, mais velho oito meses 
Quando digo que o conheci, minto por gentileza 
Reconhecia-o, isso sim, pois ninguém 
Ninguém conhece alguém, não deveras 
O mais que pode alguém é tentar reconhecer 
Assim fiz quando, no nada, te inventei 
E à beira-berma-margem-banda-rio te levei 
Quando ceava ou jantava então Heitor Luiz 
O traficante enciclopédico de pouca-saída 
Aquele que não tem por certos nem amor nem andor 
Deve ser triste ser um homem, ser um homem triste 
Outros (a maioria, Maria) são bestas felizes 
Descuidosas do panorama editorial lusonacional 
Impermeáveis ao Nobre, ao Pessoa, ao Osório, ao Belo 
Rebanho mentecapto que s’apimbalha sôfrego 
E eu, cuidoso & melindroso, sôbolos rios que não vão 
E tu, pessoa de etérea aura, nem Noémia nem Isaura 
Impossível é desejar-te as Boas Festas 
Este Agosto arde a ferro há muito malhado 
Sempre te dou por prenda ficares a saber que 
Kierkegaard significa Adro-de-Igreja 
Temor e Tremor pois não tremas ou temas 
Conceber de gorduchos dá afinal macérrima provisão 
E nunca os dias que foram firam os que virão 
Mas não, ferirão, que por pura certeza é essa a sua natureza.


Sem comentários:

Canzoada Assaltante