29/11/2020

VinteVinte - 145 (I-IV, com incisões)



145.

 TAMBÉM FAÇO ARRANJOS PARA FORA

 

Coimbra, sábado, 19 de Setembro de 2020



I 

Eis: 
De novo a chuva, temperatura decente. 
Em casa abafa-se, é melhor por ora a rua. 
(...)
E: 
Em diverso bairro, o sossego é firme. 
A ritmo lento, a vida alheia persiste. 
Não se vê rasto de paixões assolapadas. 
O tempo ajuda à interior conventualidade. 
Descarregam fruta nova no minimercado. 
Sendo: 
Contra fundo cartão-celeste, escuras árvores. 
Contentores em seu sítio digerem lixo. 
Não conheço as pessoas mas reconheço-lhes as vidas. 
São epopeias simples de pouco lirismo. 
A televisão guarda-as nas casotas. 
Senhora: 
De peito despenhado até à boca da barriga. 
Cabeleira lacada, cor-de-tijolo, áspera. 
Guarda-chuva róseo, bolinhas azuis. 
Semblante de separada, filhos casados (mal, dizem). 
Costureira doméstica, arranjos para fora. 
Vem a seu chá, sua madalena: mas sem Marcel que lhe valha. 

II 

Ouço ensemble de cravo, alaúde, voz, violino & viola-da-gamba. 
Levo o coração nas mãos, o que me atrapalha a escrita. 
(...)

III 

Não há-de ser hoje que se resolva a pobreza da humana condição. 
Até às quinze horas, pelo menos, não senti disso sinais. 
O que senti, foi deveras o vento forte nos fortes canaviais. 
Pesada névoa pluvial adensava em força a cerração. 

Tenho todavia logrado trocar por miúdos as voltas ao real. 
Circunvalho-me, por assim dizer, em periferias agrestes. 
Nómada quieto, penso mais do que digo à geral. 
A nascer se não volta, morre-se mas é um dia destes. 

IV 

Neste mais recente lustro 
Identifiquei quási inesperada malevolência 
Da parte de quem não era disso 
Nem mínima razão para tal tem. 

Faz parte do ir-vivendo, ao que semelha. 
Digo: aguento bem a patada incônscia. 
Tenho livros na casa que habito. 
E ao longe poente & nascente me sucedem. 

Queira este ser um soneto junto de V. justo. 
Queira esta antiga forma saudar toda a gente. 
Morremos um dia, extinta em nós a semente. 

Sim, estes recentes cinco anos mui me ensinaram. 
Gosto que me eduque a vida, gostei sempre d’aprender. 
Nascemos um dia irrepetível, acesa em nós a semen’gen’te. 


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Canzoada Assaltante