145.
TAMBÉM FAÇO ARRANJOS PARA FORA
Coimbra, sábado, 19 de
Setembro de 2020
I
Eis:
De novo a chuva, temperatura decente.
Em casa abafa-se, é melhor por ora a rua.
(...)
E:
Em diverso bairro, o sossego é firme.
A ritmo lento, a vida alheia persiste.
Não se vê rasto de paixões assolapadas.
O tempo ajuda à interior conventualidade.
Descarregam fruta nova no minimercado.
Sendo:
Contra fundo cartão-celeste, escuras árvores.
Contentores em seu sítio digerem lixo.
Não conheço as pessoas mas reconheço-lhes as vidas.
São epopeias simples de pouco lirismo.
A televisão guarda-as nas casotas.
Senhora:
De peito despenhado até à boca da barriga.
Cabeleira lacada, cor-de-tijolo, áspera.
Guarda-chuva róseo, bolinhas azuis.
Semblante de separada, filhos casados (mal, dizem).
Costureira doméstica, arranjos para fora.
Vem a seu chá, sua madalena: mas sem Marcel que lhe valha.
II
Ouço ensemble de cravo, alaúde, voz, violino & viola-da-gamba.
Levo o coração nas mãos, o que me atrapalha a escrita.
(...)
III
Não há-de ser hoje que se resolva a pobreza da humana condição.
Até às quinze horas, pelo menos, não senti disso sinais.
O que senti, foi deveras o vento forte nos fortes canaviais.
Pesada névoa pluvial adensava em força a cerração.
Tenho todavia logrado trocar por miúdos as voltas ao real.
Circunvalho-me, por assim dizer, em periferias agrestes.
Nómada quieto, penso mais do que digo à geral.
A nascer se não volta, morre-se mas é um dia destes.
IV
Neste mais recente lustro
Identifiquei quási inesperada malevolência
Da parte de quem não era disso
Nem mínima razão para tal tem.
Faz parte do ir-vivendo, ao que semelha.
Digo: aguento bem a patada incônscia.
Tenho livros na casa que habito.
E ao longe poente & nascente me sucedem.
Queira este ser um soneto junto de V. justo.
Queira esta antiga forma saudar toda a gente.
Morremos um dia, extinta em nós a semente.
Sim, estes recentes cinco anos mui me ensinaram.
Gosto que me eduque a vida, gostei sempre d’aprender.
Nascemos um dia irrepetível, acesa em nós a semen’gen’te.
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