06/11/2020

VinteVinte - 108 (tudo)


Amália - por Eduardo Gageiro



108.

TRIO FALANTE 

Coimbra, quinta-feira, 23 de Julho de 2020 



I. FALA UM LIVRE


O céu a arder de gelo picado, estelar.
Hoje faz cem anos de nascida a bela Amália.
Viver de algumas posses mas sem poses:
plano me parece de limpo siso.
Persevera-se de diferente modo, atido um hábito.
O hálito de cada um é com cada um.
Fechar & abrir a boca o definem.

Podeis ver hermetismo pomposo & anfigúrico no que V. atiro.
Sois livres de V. achardes livres.
Entre céu & mar, nem fímbria de terra.
E nem bem nem Mãe, perdão, nem mal.
Faz hoje cem anos a Rainha de Portugal.
É bonito o dia, esquecer-nos é permitido.
Daí que daqui não me feche a tudo, não ’inda.

Cem anos da bela divina maravilhosa Amália.
Com José Afonso & Carlos Paredes, profana Santíssima Trindade nossa.
A poesia dela é ela toda mesma.
A voz dela pertence-nos em fonte:
como antigamente os fontanários eram (d)o povo.
Esta manhã o Sol demora-se algures alto.
A bruma é para já a nova de mor monta.

Orlando Gil & Raul Jorge vão por beira-cais.
Miram os barcos, escutam a lancinante gaivota.
São irmãos-colaços, mais manos que se de sangue.
Contam-se as velhas novidades de sempre.
Orlando casou-se bem, Raul vai morrer moço.
Por enquanto no entanto não.
Vão portuariamente, ante os barcos, sob a gaivota.

Só hoje, 23, soube da morte de Luís Filipe Costa a 21.
Honra-me ter sido seu compatriota.
Deveras figura gigante no país-dos-anões.
Tinha os anos que viveu mais os que nos deu a (vi)ver.
Guardo dele uma carta.
É um dos meus mores tesouros.
Belo verso agora: Luís Filipe Costa viveu.

Ou em Le Havre uma Sophie nascida em 1961.
Mau, hórrido fim ela sofreu, sinto pena dela.
O género humano é não-raro imperdoável.
Trouxeram flores para coroar-lhe a porta.
A beleza do sítio aumenta contraste & desgosto.
A velha nação escancarou-se a selvagens.
Irredimíveis bárbaros tomaram conta da França, que as pernas lhes abriu.

Chamais-me, quê, fantasista? Chamais, sim.
Não m’importa, garanto-vo-lo com firmeza.
Já vi merda suficiente para reconhecê-la de pronto.
Muita, demasiada vi durante meus dias.
A salvaguardar-me dela aprendendo ando ’inda.
Conheço olhos mortos em caras vivas.
Pouquíssimo lamento ou remordo, sou livro

– perdão, sou livre.


II. FALA A SURDA

Carolina Norte Louçã nasceu em 1920.
Foi morta no celeiro/estábulo da família em 1929.
O cadáver inquietava a vaca & o cavalo.
Foi preciso soltá-los no prado sem limite.
Foi a mãe, Gregoriana, a matá-la.
Matou o marido também, um pouco antes.
O pai de Carolina era Samuel, olhos azuis.

Belinda Melissa Blanco nasceu em 1960.
Foi uma das vítimas do Grande Fogo de 1974.
Era no barracão de madeira à saída da vila.
Ali ensaiava o rancho folclórico local.
Morreram mais sete pessoas mas não lhes sei os nomes.
Foi drama noticiado em toda a Espanha.
A causa do sinistro é ainda hoje ignorada.

Microstórias afins infestam os arquivos-mortos.
Os propagandistas da felicidad’artificial rasuram-nas.
Os idólatras exorcizam-nas para longe.
Os publicistas anatematizam-nas diabólicas.
Os parvinhos ignoram-nas simplesmente.
E no entanto elas sintetizam o género.
Incidente & acidente comungam a raça.

Sabeis ali na Jugoslávia? Ali na China?
Ali na Crimeia? No Poço dos Negros?
No Wisconsin? No Arco do Cego?
Ah – não sabeis.
Usais o smartphone.
Elegeis os cavacos, comeis de cacos & de cócoras.
Na noite arrefecem as ossadas.

Tolerância & intolerância geminam-se.
A merda nunca será ouro, nem pintada.
Quanto mais a pintam, mais a merda cheira.
Estão podres os fundamentos moralóides.
Não lograrás ensinar latim ao babuíno.
Não penetrarás de gnose o ajoelhado.
Não verás bailar o Sol em Fátima sem coçares os colhões ao Padre Inácio.

Duas palavras juntas provam a inexistência de Deus.
Elas são estas: Leucemia Infantil.
Qualquer religião é um genocídio de elefantes.
Qualquer infanticídio santifica Satanás.
Doutrinar é arrebanhar cegos.
E no entanto morremos iguais.
E irremediavelmente ninguém regressa.

Chamais-me, quê, negativista-pessimista?
Podeis fazê-lo, pois é certo que sim.
Descreio profundamente no espelho humanóide.
Tirando meia-dúzia de estetas, só patetas.
Folhear a História é borrar ambos os pés.
Chega a ser pungente, o fedor vizinho que nos sai do próprio corpo.
E nem amanhã isto muda

– diz a surda.


III. FALA O VIAJANTE

O cavalheiro baixo toma licor-de-menta.
Passa-se isto há quase noventa anos.
(Continua passando-se, pois que se reconta.)
Tímido sol tenta branquear as nuvens.
Choveu de madrugada, é limonado o ar.
O cavalheiro lê em sossego seu manuscrito.
Nota-se-lhe segurança pecuniária firme.

Fora deste clube de cavalheiros, fervilha o burgo.
No estuário, branquejam velames enervados de vento.
Em certo jardim doméstico, a ruborizada roseira.
À janela pobre, a pobre viúva espera ’inda o marido.
Amplo tampo de madeira preside a uma cozinha:
maçãs, ovos, nozes, verdes, pão, jarro de leite-gordo.
Passam quarenta anos, não menos.

Cinturão de aldeias escolta o longo litoral.
O mar penetra em salsugem algumas milhas.
Por aqui, nem cheiro a índias ou américas.
Oficinas pequeninas sustentam quanta indústria.
A feira de sábado congrega pequenos-produtores.
Alguns sonham distâncias mil-quiméricas.
Nem todos: há quem saiba ser grato ao torrão.

Um mínimo basta de atenção aos fios da vida.
Tomada a menta, lidos os papéis, dormita o cavalheiro.
Foi Celestino quem deixou pobre & viúva Serafina.
Mas é feliz aquela roseira rubra inumana.
O bafo marinho não é por todos venerado.
Eu não o trocaria pelo infecto vespeiro das cidades.
Mas eu aqui não importo, apenas relato.

Quase um século arde além-linhas.
Arde o que é lenha pura em música.
A pena é tal lume nada aquecer já.
Na pedra que calça o adro? Não já.
No bosquete que o vento toma? A hora é má.
Está tudo na Língua, valha-nos isso.
Deixaram ruir o meu dia novo, sim.

Antes comer o pão amaro do que sonhá-lo.
Antes fechar a boca com sapiente silêncio.
Depois, nada. Nada, agora. Nunca mais.
O cavalheiro liquida a mensalidade do clube.
Agradou-lhe o manuscrito, que firmará.
Sob a ponte, a chata passa esvaziada.
Assim tanto a nossa vida acontece.

Viajo sem Vós mas não sem voz.
Digo as coisas que torno minhas devagar.
Serafina, queima teu punho em Junho.
Dorme Celestino d’ossos-mortos em cal-viva.
Passa a tribo dos grandalhões da estiva.
Arde, meu lume, dá voltas no gelo.
Essa pessoa sonhada não te nasce

– nem te mata.


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Canzoada Assaltante