04/11/2020

VinteVinte - início do 104 (I a IV)




104.

 

EXEGESES & PINGARELHOS

 

Coimbra, sábado, 18 de Julho de 2020

 

 

I

 

Alzira p’la sossega estende a roupa

caiada a sabão do mais lavado.

Tostão que se não gasta, mais se poupa:

cheira a roupa lavada o poupado.

 

Natércia vinca as calças do marido

Romeu q’inda gosta delas vincadas.

Matrimónio este é sem mor prurido:

e aposto que as camisas são gomadas.

 

Em esquema rimático A-B-A-B/C-D-C-D, as duas estrofes acima alinhadas soam musicalmente a metro decassilábico. Tematic’assuntamente, são dois cromos de solidão feminina em acto doméstico. Matrimoniadas, duas senhoras agem casadamente. Ambas trabalham roupa, assegurando trato higiénico à vestimentária caseira. A primeira trata da roupa em geral; a segunda, de determinada peça exclusiva de seu senhor marido.

Pode dizer-se que certa ligeireza (leviandade, não; ligeireza é o termo escolhido & a meu ver apropriado) freme da leitura óptica de ambas as estâncias sobreditas & sobrelidas. Tal não é mal nem bem – é só o que parece ser: duas epifanias calóricas decorrentes da imagética nutrição lusodoméstica.

Posto isto, penso estarmos devidamente municiados para escopo analítico de qualquer outra ousadia poética em páginas seguintes.

Assim seja.

 

II

 

Os anos favoreceram-me a fluidez expressiva.

Fui recusando espelho como umbigo.

Em caso mais extremo, fui p’r’à estiva.

Saudei sempre bem quem fosse amigo.

 

Liberto eu já da vã sensualidade,

namoro já tão-só a palavra-justa.

A franqueza? Sei francamente quanto custa:

mas a hipocrisia é pior, valha a verdade.

 

Lá em cima (atenta a geografia da página – mas o sentido é: por-dentro), o versejador-livre dá conta de sua liberdade – ou liberalidade; ou libertação – palavresca. Isto, no primeiro verso do primeiro tetraconjunto. No segundo verso, ele faz-se verruma, agrilhoando certos autodeslumbrados que nem para consumo da/na Casa. O terceiro verso desta estância é o mais autêntico: andando em obra (literária), teve de andar nas obras (como pintor & como servente-de-pedreiro). A quarta linha não é mentir sequer poética.

(...) O resto (antítese franqueza/hipocrisia) acerta mosca na mouche.

 

III

 

Pessoas também por aqui triunfando vidinhas.

Sai Gervásia da farmácia, vai aviada.

O Zé Camolas sonha com petinguinhas.

O Inácio vai antes p’la carn’assada.

 

Conheci uma Laura eu, mas não chego a Petrarca.

Nenhuma Lídia enfim me faz Ricardo.

Tristão isola Isolda, vai Gil de barca.

Maria Eduarda / Carlos Eduardo.

 

Este dúplice poema é de flagrante esquizomistura.

Acima, a proximidade bacocazita, a vizinhança pimbazita; abaixo, a referenciação erudita, pesporrenta, coimbrinha, coiso.

Deve ser triste andar nisto a vida toda.

Mas:

Andar noutra coisa, não – a outra-coisa que se fôda.

 

IV

 

Dou-te todo o meu tempo do meu mundo

para ficares como és, sendo quem ficas.

São as dez-da-manhã: me(r)ditabundo,

penso em académicas & benficas

 

que na Suécia desconhecem, loir’ignorantes.

Verdade não ser já Coimbra o q’era dantes.

Dez-&-dez-da-manhã: quartel-d’-Abrantes,

há já meio-ano que não uso restaurantes.

 

Já na fase solidificada de sua carreira, Aquilino Ribeiro trabalhava toda a manhã seu capítulo manuscrito; Schubert, igual; Simenon, o dia todo durante dez dias. Cada um sabe de Sim. E Non. 


 

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Canzoada Assaltante