104.
EXEGESES & PINGARELHOS
Coimbra, sábado, 18 de
Julho de 2020
I
Alzira
p’la sossega estende a roupa
caiada
a sabão do mais lavado.
Tostão
que se não gasta, mais se poupa:
cheira
a roupa lavada o poupado.
Natércia
vinca as calças do marido
Romeu
q’inda gosta delas vincadas.
Matrimónio
este é sem mor prurido:
e
aposto que as camisas são gomadas.
Em
esquema rimático A-B-A-B/C-D-C-D, as duas estrofes acima alinhadas soam
musicalmente a metro decassilábico. Tematic’assuntamente, são dois cromos de solidão
feminina em acto doméstico. Matrimoniadas, duas senhoras agem casadamente. Ambas
trabalham roupa, assegurando trato higiénico à vestimentária caseira. A primeira
trata da roupa em geral; a segunda, de determinada peça exclusiva de seu senhor
marido.
Pode
dizer-se que certa ligeireza (leviandade, não; ligeireza é o termo escolhido
& a meu ver apropriado) freme da leitura óptica de ambas as estâncias
sobreditas & sobrelidas. Tal não é mal nem bem – é só o que parece ser:
duas epifanias calóricas decorrentes da imagética nutrição lusodoméstica.
Posto
isto, penso estarmos devidamente municiados para escopo analítico de qualquer
outra ousadia poética em páginas seguintes.
Assim
seja.
II
Os
anos favoreceram-me a fluidez expressiva.
Fui
recusando espelho como umbigo.
Em
caso mais extremo, fui p’r’à estiva.
Saudei
sempre bem quem fosse amigo.
Liberto
eu já da vã sensualidade,
namoro
já tão-só a palavra-justa.
A
franqueza? Sei francamente quanto custa:
mas
a hipocrisia é pior, valha a verdade.
Lá
em cima (atenta a geografia da página – mas o sentido é: por-dentro), o
versejador-livre dá conta de sua liberdade – ou liberalidade; ou libertação –
palavresca. Isto, no primeiro verso do primeiro tetraconjunto. No segundo verso,
ele faz-se verruma, agrilhoando certos autodeslumbrados que nem para consumo
da/na Casa. O terceiro verso desta estância é o mais autêntico: andando em obra
(literária), teve de andar nas obras (como pintor & como
servente-de-pedreiro). A quarta linha não é mentir sequer poética.
(...) O resto
(antítese franqueza/hipocrisia) acerta mosca na mouche.
III
Pessoas
também por aqui triunfando vidinhas.
Sai
Gervásia da farmácia, vai aviada.
O
Zé Camolas sonha com petinguinhas.
O
Inácio vai antes p’la carn’assada.
Conheci
uma Laura eu, mas não chego a Petrarca.
Nenhuma
Lídia enfim me faz Ricardo.
Tristão
isola Isolda, vai Gil de barca.
Maria
Eduarda / Carlos Eduardo.
Este
dúplice poema é de flagrante esquizomistura.
Acima,
a proximidade bacocazita, a vizinhança pimbazita; abaixo, a referenciação erudita,
pesporrenta, coimbrinha, coiso.
Deve
ser triste andar nisto a vida toda.
Mas:
Andar
noutra coisa, não – a outra-coisa que se fôda.
IV
Dou-te
todo o meu tempo do meu mundo
para
ficares como és, sendo quem ficas.
São
as dez-da-manhã: me(r)ditabundo,
penso
em académicas & benficas
que
na Suécia desconhecem, loir’ignorantes.
Verdade
não ser já Coimbra o q’era dantes.
Dez-&-dez-da-manhã:
quartel-d’-Abrantes,
há
já meio-ano que não uso restaurantes.
Já
na fase solidificada de sua carreira, Aquilino Ribeiro trabalhava toda a manhã
seu capítulo manuscrito; Schubert, igual; Simenon, o dia todo durante dez dias.
Cada um sabe de Sim. E Non.
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