08/01/2010

Versos Sobre Tudo

S. João da Ribeira, Almagreira, (1 a 4),
e Souto, Casa, (5 a 8),
na noite de 7 de Janeiro de 2010

1


São rapazes maduros, à flor da noite saíram das oficinas, desceram dos andaimes, fecharam as lojas, vieram tomar alguma coisa antes da recolha ao lume do lar, palram em sossego sem ligar peva à televisão, faz frio lá fora, é fria a flor da noite, fuma-se à pressa e volta-se para dentro.
Também saí, também desci, fecho também – agora.


2


Tenho comigo este livro,
Pátria, Lugar de Exílio.
Que poderosa a dignidade de
Daniel Filipe,
que tremenda dignidade humana a
deste livro,
Pátria, Lugar de Exílio.


3


Não faço ideia de como seja em Cannes, aqui é S. João da Ribeira, não a homónima de Rio Maior e de Ruy Belo, mas S. João da Ribeira da freguesia de Almagreira, concelho de Pombal, distrito de Leiria, Portugal também, não faço ideia de como seja em Cannes a noite, aqui faz frio e é negra e fria a pele do céu à terra caído, são de pano e plástico as rosas fechadas no jarro ao canto do balcão, um prospecto avisa na parede das eucaristias à semana em Almagreira, Pelariga, Redinha e Tapeus, os rótulos lêem Insígnia, Requinte, Alega, Mulligan, Teacher’s, Novita, Casal Garcia, Três Marias, Favorito, Croft, Açoteia, Rosso, Romano, Jack Daniel’s como eu tirando o Jack e o 's, Macieira, Bock, às vezes a noite é deserta como se o Senegal fosse feito de ar preto frio sem alguém perto, recolheram-se os maduros rapazes operários, ladra sozinho o televisor, máquina imbecilizadora deste povo irremediável que é o meu, na preta fria noite de um janeiro mais. Ou menos.


4


Pretendo sejam anáforas as manhãs,
pretendo cada manhã de cada dia,
pretendo cada dia seguinte a cada noite,
pretendo, como esta, a noite.


5


Uma parte de nós é ultramar.
Tem qualquer coisa de céu, magnésio e fogo, gelo e ferro, brilho e buraco-negro, poço e pêssego, qualquer coisa que sobe.
Claro que isto não tem importância por aí além.
Muito dinheiro disponível é uma satisfação aceitável, até do ponto de vista metafísico.
Uma outra parte de nós é permanência.
O nome, que nos substitui na cabeça das pessoas que tocámos, é permanência.
Fundo interior de vaso, o sentimento sobe ao nome, olha por nós o mundo.
Ainda esta manhã olhei do cimo do nome a névoa.
O nome forja-nos uma inocência sempre pronta a estrear.
Isto já tem mais importância, pelo menos social, do que o ultramar que parcialmente somos.
Em uma vila de moldura verde e muito escura (choupos sobre que chove), por exemplo, a visão sega caules amarelos, roxuras rápidas como o nome ultramarino que nos leva o corpo a toda a parte, em parte.
A condição terrena sustenta em nós o reconhecimento do comércio essencial, os meninos-jesus de cartolina, os homens-aranhas de látice, os fetiches de cabedal, os livros de mortalhas, a irmã-lúcia com sabor a baunilha, os crachás de obreia, os azorragues de espuma da boca, os pastéis de Tentúgal e os postais do Ultramar em nosso nome.


6


Sento-me e espero sem ânsia.
As pessoas chegam a sós consigo.
Tomam alimentos, fumam devagar.
A luz que foi dia acabou já.
Segue-se a noite de inverno.
As lâmpadas são algo frias onde espero.
Ninguém criará raízes onde espero.


7


Também acontece a revelação, aliás fácil e esperável, de as pessoas serem pedras no dominó das ruas, das existências, dos circuitos, dos anos.
Olhai comigo:

um terno-ás de guarda-chuva pela rua Humberto Delgado;
um doble de quadras no adro da Igreja de S. José fazendo festas a um cão;
uma quina-branco vestida de rosa-chá como recepcionista de dentista;
um duque-sena é polícia à paisana em perseguição do doble de brancos ladrão de merendas de crianças.

Sento-me e jogo sem ânsia.


8

Deixarei quanto me deixaram,
mais o que puder ter juntado.
Versos sobretudo, receio bem,
porém.

1 comentário:

Professor disse...

Sim, são sobretudo versos. E dos bons.
Obrigado, Daniel

Canzoada Assaltante