03/01/2010

Observatório Observado

Souto, Casa, noite de 3 de Janeiro de 2010





A cabeça, como um observatório ao alto de uma colina, atirando atenção aos vales do mundo: dever original da pessoa viva.
Tal dever cumpre mandato na função escriturária de uma das mãos, a outra segurando o cigarro ou a testa.
A vida traz entretanto coisas: despojos a cores, triângulos defensivos, quartetos de jazz, facturações irreversíveis, treinadores da respiração, menopausas agressivas, prospectos da Guiana Francesa, estigmatizados com e sem crédito na Piazza di San Pietro, cartões amarelados que forraram cómodas de mulheres solteiras, guardanapos de refeitório de polícias, lascas genitais, capacetes, tiras de milho frito, crestomatias gregas, só o sentido dela mesma vida é que não.
Um domingo, em casa, sentir (e observar) o albatroz, o rumor humano da vindima, o ranger dos matrimónios, os versos felizes de pessoas amarguradas, a Marinha da Guia, o cauteleiro osteopata, o tubarão jactancioso e democrata-cristão, a efeméride deste e daquilo, postais do Café Gelo, um electricista chamado Patrício Delfim Vilhena Abrantes, uma copeira chamada Rosa Alice Vieira Augusto, um casal judeu não praticante uma do outro, um cabalista perdido na floresta, uma avenida de oitenta quilómetros só com sapatarias de um lado e do outro, o Kirk Douglas mais velho do que o Novo Testamento, o Nacional da Madeira a caldos de galinha, micções geológicas calculadas pelos rins, a tristeza material por causa de Sebastião da Gama e um fim-de-semana esquecido na prateleira como uma lata de graxa das redondas.
A cabeça observada pelos vales do mundo, à leitura.

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