Pombal, tarde de 25 de Janeiro de 2010
1
Assim como as laranjas são os olhos da laranjeira, assim a claridade de um rosto é toda água colorida por olhar.
Nada me custa esta verificação (esta versificação) ao sol fresco da segunda-feira, começada a tarde de Janeiro. A oriente, dardeja ouro a imitação da montanha. Penso num amigo doente sem saber porquê. Além, a residencial, além o hotel, aqui agora o rio de pobres desta cidade desengraçada.
Há uma laranjeira em o meio do meu caminho solitário. Outras houve na minha vida, em outro século. Gosto de laranjeiras. Acho-as uma recompensa. Na infância, pertenci a uma figueira com nome: a Figueira da Carmo, não sei de onde lhe vinha a graça fêmea, era o nome que tinha. Emanava figos capitosos, de uma ardência açucarada que algumas mulheres seivam pelos mamilos quando ciosas. Nem todas.
Saí a ver o sol reinstaurando o mundo destas bandas. A sapataria de preços populares, a shop erótica, a pastelaria deprimente, a petisqueira onde o brasileiro que matou a mulher à facada deve ter bebido muita cerveja e muita cachaça em celebração do exílio e da loucura, as coisas do mundo que por tolice enumero em cadernos para ninguém.
Assisto agora, com delícia, ao homem distraído que almoça carne assada no forno com lâminas de batata dourada no molho e arroz solto ao gosto da pomba com aparas de chouriço crestado. Bebe uma pouca de vinho em sorvos pensativos. Agora ele conversa com um aposentado alto, que enverga boa roupa de escuro azul e calça sapatos embolados de joanetes. O meu sossego é de uma experimentada angústia, em absoluto delicada como eu, quando colorido pelo sol.
2
Na rua que a sombra tomou ao cabo do meio-dia, é bom arder de frio ante as pessoas que passam. Uma senhora mais nova do que eu, lá vai ela, de blusão acolchoado castanho, botas de salto, pernas saudáveis, cabelo de castanho natural. Dois cavalheiros falam de um cão que há-de vir do veterinário. Um deles parece gostar muito do cão. Ainda bem, penso.
Ao ar fresco, o cigarro é a fogueira possível. Às vezes, a proximidade do comboio trepida a atenção à passagem, à velha eterna efemeridade da passagem. Surge então um ror de vocábulos: duas mulheres falam de uma terceira que é de casamento muito infeliz. O homem bebe e bate-lhe quando consegue acertar-lhe. Sorrio escuramente à informação, que é de largo espectro de acção humana.
Quantas vezes terei derivado pela falta disto? Digo: estar vivo na antemão dos vocábulos que a tudo informam e enformam, tais: a mulher violentada, a mulher acolchoada, um cão amado, uma figueira com nome de mulher?
Muitas vezes.
3
Um senhor chamado Jaime lê o jornal do dia. Gorda aliança o anela à esquerda. Clareira capilar ligeira, resto da cabeça bem conformado de farripas grisas, maduras, dadas ao respeito público, níveas, outonais. É cumprimentado por um cavalheiro que veio a comer um pires de dobrada esparsa em feijão branco.
Estes senhores são do meu tempo. O meu tempo é nosso – e é este. A esta hora, casas arruinadas sustentam ’inda ferrugentas árvores de fruto, riscos de pedra traçados por crianças octogenárias. Ao menos eu, eu compreendo quanto digo por escrito. Por exemplo:
– Andava eu na Primeira Classe (não na dos comboios, mas na da Escola Primaria), levou-me o meu Pai a casa de um cliente dele que era das bandas de Aveiro. Suponho hoje que não seria longe de onde o Eça passou temporadas infantis. O almoço era leitão em honra do meu Pai. O filho da casa andava na Quarta Classe – e recordo com cristalina e absoluta perfeição como tal estatuto me pareceu invencível: andar na Quarta!
Depois sou este agora, com mais escola e menos cristalinidade.
4
Espera.
Caramba, é o meu tempo.
Quando se soluça, soluça-se em entrecortadas
linhas.
A força animal dos homens argentários,
o encosto feminil da economia doméstica,
a invencível saturação existencial dos domingos,
o Schumacher guarda-redes alemão não ter sido
expulso tendo feito o que fez, em 1982, ao
Battiston, coitado do Battiston:
tudo é catalogável em remanescente efeito.
Vigor, glicínia, gardénia, cisne, multibanco:
remanescentes efeitos à borda da Vala do Norte,
de um dia a morte.
Espera.
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