Rilke em 1902
Pombal, tarde de 23 de Janeiro de 2010
1
O menino fez-se silhueta adulta de café.
As circunstâncias tornaram-no dedutível nos impostos.
Fizeram-no cidadão.
O menino não tem quaisquer hipóteses de não ser gregário.
O café e a repartição de finanças são creches para ex-meninos.
Na Coreia do Sul, a coisa é a mesma.
O Universo Possível agrega adrede ex-crianças que alugam a carne à fábrica de canhões,
A Atília, o Josué, o Carlos Chuva, a Man’ela Pernalta – duas ex-meninas, dois ex-meninos.
Eles não são cientes (mas não importa que não) de que o Menino Jesus se esteja nas tintas para a Poesia Portuguesa do século XXI, a qual, convenhamos, é sobretudo ex-meninice a rebater na tecla do erotismo pós-divórcio etc.
O ex-menino caminha pelo acesso descendente à cidade, há prédios novos a ocidente, estão todos à venda, já os pintaram, canalizaram, electrificaram, sinalizaram.
O ex-menino fala de futebol africano com os ex-meninos construtores de prédios, pintores de prédios, canalizadores de prédios, electrificadores de prédios, sinalizadores de prédios.
O ex-menino fala de futebol africano com eles mas pensa nisto assim:
COMO SERÁ DIZÍVEL ESTE SÁBADO A ESTE MATIZ DE LUZ?
2
Este sábado a este matiz de luz
durante a duração da minha vida.
Este corpo com lápis na voz.
Estes prédios novos, esta avenida.
Tinta azul fecha o corpo da cooperativa agrícola,
à passagem os camiões abrem as europas.
Fecha-se o coração em copas,
agra fervilha a vesícula.
O corpo da mãe é cidadão de amor extinto.
Altaneiro castelo reina pradarias.
Tabaco ao balcão, à mesa o tinto:
a vida tem noites, a vida tem dias.
3
Um revoar de aves outonais sulca o coração,
não é fácil ir pelo parque depois da chuva.
O corpo circunvizinha coretos apagados,
de segunda a sexta é mais fácil esquecer.
Lojinha de pronto-a-comer para celibatários,
notícias do filho da vizinha luxemburgado.
Gesto gentil de sob o loureiro frio,
à passagem, qual ave outonal, do corpo.
Maravilhoso ror de pessoas devindas sombras,
imitadoras de faca & viola em viela & caca.
Estupenda portugalidade da solidão bruta,
à taxa de 21 por cento em descontos.
Leiria cresce para charcos adjacentes,
Peso da Régua doura pílulas amargosas.
A rádio a tudo liga, no escuro dos carros.
À direita corta-se por laranjais pretos.
Diz-me, Paulo R., se a perfumada tarde de maçãs
alonga ainda as nossas áleas-vidas
em decurso ininterrupto quais cinemas
de íntimo glandular embaçamento?
Na Suécia, diz-se, tem-se vagar de carpinteiro
na solidão dos grandes frios, desertas as ruas.
Em Portugal, digo-o eu, o calor é de fornalha
mas não a terra a quem a trabalha.
Brune-se de antiguidade a madeira corporal,
alemães revestidos de pret’encarnado vogam
no ar da História dos Velhos Burgos, enquanto
as avós portuguesas coam azeites e netos.
Um coração revoa de outonos tantoutras aves.
4
Não pudemos, mãe nossa de ninguém, guardar lição
de intempérie nem caligrafia propedêutica.
Socráticas são a ironia e a maiêutica
mas é que, mãe, arrulha rolas o coração.
5
O lindo amor de quem se ama é bonito
como, diz o povo, os coisos a bater no pito.
6
Circunstância agradaprazível da minha vida, o ritmo
insular da Língua assola circunvalações
acólitas de si mesmas, aos trambolhões,
em ínsuas-ilhas-ínsulas-e-istmo.
7
Vem, Madalena, colher a vagarosa rosa
da tarde finada, vem.
Madalena, os guisados sem cebola o não são.
Assim sem Madalena é o coração.
8
Um fio de azeite é cometa em escuro quarto.
9
Amador esquecível da liberdade e da história,
atrevo calado e puro lavras temíveis
de glicínias e perduração. Se louca amargura,
muito bem. Da Coimbra em este canto anódino,
a manha embraia e tece a esquissa –
da mama luciferante, o circo da Histeria,
quem há dever-se.
(Decalcomania poética sobre Rui Knopfli,
de I. Proposição, in O Escriba Acocorado,
Moraes Editores, Lx., 1978:
“Servidor incorruptível da verdade e da memória,
escrevo sentado e obscuro palavras terríveis
de ignomínia e acusação. De pouca ternura
também. Na penumbra deste recanto anónimo,
a aranha sombria entretece na quebradiça
baba lucilante o fabrico da História
que há-de ler-se. (…)”)
10
Eu de ex-menino-em-menino-inda sabia já
a mentira genérica dos reis sobre os homens
embora homens.
E então?
Então, só a concertada filhadaputice oblitera
a involuntária asneira de haver nascido,
em pior,
de algum, de homem & mulher,
amor.
11
Ele tinha de seu o respirar – e muito era
quanto tinha, ainda assim.
Como domingo à tarde em um cinema, a Língua
o sentava escuramente ante a luz.
Buda, Jeová, Alá ou Jesus – o não socorriam.
Alguns poetas sim.
Duíno, o Castelo, esse homem tremendo no papel.
Seiscentos gajos antónios, um que é daniel.
Emanuel. Rafael. Miguel. Arcangel.
Ele tinha de respirar o seu.
12
Comandita de nervagruras
cedeu pólipo a mor toranja.
Pratos do dia, ruibarbo e canja,
vinhaça em taças as mais escuras.
Selénica sede mas não social,
agrofilinagem a tanto o grama.
Lençóis lavados em suja cama,
pensões malapostas doitoportugal.
13
O menino tem hipóteses de não ser Gregório.
14
Antigamente o Sporting de Espinho, o Bazar do Porto, o Varzim Sport Clube, os Gelados Rajá e aquilo dos áugures, isto é, a Vida, isto é, Missão: Impossível.
15
O pai é um homem parecido com a ausência
de todos os outros.
Não é assim o vosso?, pergunto
eu.
16
Esfera armilar e valvular,
o coração físico é uma bomba.
Às vezes s’iça, outras se tomba,
esfera valvular e armilar.
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