Souto, noite de 26 de Janeiro de 2010
Que memória genética involuntariamente trazemos agarrada ao sangue? Transmitir-se-nos-á, ou não, a ansiedade própria do amor que algum antepassado sofreu? Se alguém vos foi antes feliz, por que o não somos? É muito funda, esta humanidade portátil nossa. Falo daquele que construiu uma casa com a mulher a que ele quis pertencer. Falo daqueloutro que ao lume do lar juntou o fogo dos seus olhos. E daquela que quis filhos de um homem que não era dela nem era de ninguém. E daqueloutra que acendeu velas numa igreja quando chovia e quando o mundo era quase tão triste como o de hoje. É tão monástica a nossa de cada um solidão. Não estaremos nunca preparados para a doença que prostra as crianças e as fecha em caixas brancas com embutidos dourados. Nunca somos nem seremos nem fomos principescos como os animais. E no entanto é interpretar sinais o que desejamos: a nuvem em cujo torno a tarde reverbera, o milagre da laranjeira, a poderosa covardia que é a mais íntima e a mais leal das nossas irmãs, um velho que uma vez vi dotado da perfeição das árvores, um sonho em que sorrimos a quem nos sorri por nos desejar bem e muito. E não é loucos que estamos ou somos quando, tão nítidos, tão clarividentes, os nossos mais amados mortos juncam e infestam o tom da voz e o traço do gesto dos nossos vivos mais amados. Reanima-se em nós um século que não poderemos viver antes da nossa de cada um morte. Quando estou acordada dentro do sono, somos-te. Balcões amurados sobre um trecho de rio seriam tudo quanto nos pertenceria em a glória da pobreza. Tu viajaste de comboio quando adoecemos, a febre vossa nos pagou o bilhete, as janelas fotogramavam a vaca e o cavalo e a ovelha e o cão no prado, a silhueta da extinta fábrica, um raio de sol obliquando o terror do amor por alguém que nos não quer e não vais ter de mim. E os nomes com que imitamos o mármore? E os talhões de soldados abatidos que só pudemos esquecer por termos morrido, também nós como vós, à nascença? Oh sim, profundas casas como poços molham de enguias os nossos olhos e as estrelas que nos perdem, que são os olhos do Senhor, seja o senhor quem for-
mos.
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