10/01/2010

Isso Terrível, a Certeza de Estar-Se Vivo


© Clarence John Laughlin - A Dream of Pearls (1940-41)



Souto, Casa, tarde e noite de 9 de Janeiro de 2010





No quarto às escuras, a única luminosidade provém do rádio-despertador na mesinha-de-cabeceira: a perfeita geometria dos algarismos da hora, minuto a minuto. A outra luz não pode ser vista, reside no interior da cabeça da pessoa deitada. O pensamento reverbera glossolalia, entrecortes silábicos, imagens escrevendo-se no ecrã. Fora, a hora-número trabalha nas trevas. Além-paredes, a casa respira. Ferro, louça, madeira, cera, roupa, tudo trabalha nas trevas. Também os animais da casa são geometria e perfeição. Guardam o chão sobre que dormem. São invioláveis, mas participam da luz que se passa no interior da cabeça da pessoa deitada.
Outra pessoa sonha em parte com a pessoa deitada na casa respiratória. A outra pessoa não tem rádio-despertador. É portanto perfeita a escuridão, plano de fundo e tona para geometria alguma.
Muitos homens de outros sucessivos séculos quiseram ler no G de geometria o G de Deus (God). Pedreiros-livres, demandadores de uma ordem cósmica que talvez só possa ser sonhada por corpos, deitados ou não, em o sono ou não.
Há livros em ambas as casas dos corpos adormecidos. Infância de Máximo Gorki. O rubi do rádio-despertador pulsa na lombada de Gorki. Na outra mesinha-de-cabeceira da outra casa do outro corpo, Confession d’Une Masque de Yukio Mishima. Em ambas as casas, fotografias movem-se pelas paredes com a palpitação cega das mariposas. Há títulos comuns às duas casas que respiram: Informação ao Crucificado de Carlos Heitor Cony, O Papa Verde de Miguel Ángel Asturias, Persuasão de Jane Austen e O Regresso dos Remadores de João Miguel Fernandes Jorge.
É uma noite muito fria, lá fora – e também a noite é comum às duas casas, mas em décadas diferentes. A segunda casa não tem animais de estimação, só os insectos, as bactérias, alguns ratos talvez. Medusas badanam águas cerebrais, nos interiores das cabeças deitadas. Não há cor, não há som. Há isso terrível: em o fundo de tudo, a certeza de estar-se vivo. Cada corpo vive em medusa. O número das horas inumeráveis também, em rubi. Na segunda casa, as horas são negras, vivas medusas também, mas escuras, não mostram o número.
Pode a primeira casa ser russa de Borodino, pode não ser. Pode a segunda casa ser birmanesa de Rangum, pode não. Ambas são de madeira, madeira do comum bosque do planeta, madeira que cursa as décadas, os séculos, a habitação dos corpos como as ideias e o que se sente e o que é sonhado.

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