06/01/2010

Uma Primavera Perdida


Souto, Casa, manhã de 6 de Janeiro de 2010

Consta que a Primavera de 1940 foi notavelmente luminosa em França, diz a voz de um senhor da televisão. O exército francês ronronava estupidamente na Linha Maginot. Maio e Junho trouxeram os Alemães e a derrota. O velho Gamelin levou na tarraqueta como gente pequena. Sofrimento e humilhação até 1944. A tal Primavera notavelmente luminosa teve sequela sombria, portanto. Acontece aos piores. É o que faz esperar que chova.
Gente desse tempo: General André Beaufre, do Estado-Maior Francês; o Autor do fabuloso Quarteto de Alexandria, Lawrence Durrell; o também inglês Sir Edward Spears; o General alemão Siegfried Westphal, da linha da frente ocidental; o correspondente de guerra Gordon Waterfield; o comandante de Panzers General von Manteuffel; a outra raposa nazi, General Guderian; o anacrónico generalísimo gaulês, General Gamelin.
Dia 10 de Maio, precisamente às 5h30m: bordoada da ofensiva alemã. Cagaram para a Linha Maginot, onde um tal Jean-Paul Sartre fazia de soldadinho de chumbo muito entediado. Os nazis estavam em força na Bélgica e no Luxemburgo, claro. Armadilharam os Aliados sem mais nem menos. Sabiam-na toda. Os aviões franceses e ingleses foram caçados no chão de cinquenta aeródromos pela Luftwaffe. Fácil. Panzers pelas Ardenas até Sedan. Chegaram ao terceiro dia da ofensiva, apesar de Gamelin garantir que nunca poderiam chegar antes do nono. Risota geral do lado teutónico. Inquietação nas margens do Meuse. Maio bonito, feio Maio. Rommel em acção, caldo entornado: vem aí a Divisão Fantasma, a Sétima Panzer. A Raposa do Deserto, em carta à mulher, descreveu a sua incursão em solo francês como uma “Volta à França-relâmpago”. Sacanita. A ruptura da frente pelo Meuse condenou a batalha a favor dos nazis. Franceses e ingleses acordaram em pleno realidade. Soluços na garganta, ao pé da faca. Quase metade da força aérea aliada empregue no contra-ataque foi dizimada pela superior linha da Luftwaffe. Até então, foi o pior desastre de sempre da Royal Air Force de Sua Majestade. Com a Holanda ajoelhada, nada poderia salvar a França da sua mesma incúria. A Blitzkrieg tinha chegado para ficar quatro longos, quatro eternos anos. Rumo a Paris pela estrada (N36) de Chimay, Avesnes e Maubeuge, cantando e rindo com banda militar e tudo. Cercados na Bélgica, seguir-se-ia o deus-nos-livre do embarque à pressa em Dunkerque. Refugiados (freiras incluídas) aos milhares. Trouxas de roupa, galinhas, filhos, carroças & calhambeques, garrafões de vinho e cestos de queijo, a avòzinha atarantada, um cagaçal multitudinário em homenagem a essa luminária de nome Gamelin, que teimava em não admitir o fracasso da sua “estratégia” defensiva, demitindo dezenas de oficiais e mandando os gendarmes espiolhar eventuais quinta-colunistas traidores. A 17 de Maio, cai Bruxelas. Finalmente, Gamelin foi posto na rua. Mas já rondava a besta do Marechal Pétain, que, octogenário e caquético, culpou os marxistas, vejam lá bem, pelo desastre. O futuro colaboracionista da vergonha de Vichy não tinha qualquer traço de vergonha no focinho. Valenciennes, au revoir. Debandada de milhares de soldados franceses: armas fora e rendição antes que se faça tarde, o pai morre e a gente não almoce. A drôle de guerre (phoney war, à inglesa) tinha descambado em guerra a sério, mas só com uma testa-de-ponte digna do nome: a alemã, claro. Até o General Giraud foi capturado, sem mais aquelas, em Wassigny no dia 19 de Maio. Conseguiu escapar-se em 1942, vá lá, a tempo de ser comandante-em-chefe dos franceses no Norte de África. Pelas estradas do Norte, doze milhões de pessoas fugiam sem esperança. Vinham aviões alemães picar e metralhar as longas filas de desesperados. O Deus católico batia altas sestas, no entrementes. A chacina não poupava sequer as crianças. A 20 de Maio, os nazis chegaram ao Canal. Boulogne e Calais caem, a 21 e 26 de Maio. O derrotismo galgava valas até Paris. Não faltaram “pacifistas” pró-germânicos entre os políticos franceses. Rezas em Notre-Dame (freiras incluídas), pois pois. Quando Dunkerque cai a 4 de Junho, Hitler ordena que os sinos dobrem na Alemanha durante três dias para celebração da “maior vitória alemã de sempre”. Avançon a sete quilómetros, Reims a 41; Grand Fitz James a sete e meio, Paris a 75. no mesmo dia 10 de Junho em que o Governo francês deserta Paris rumo a Bordéus, Mussolini ladra a entrada da Itália no conflito declarando guerra à França. A 16 de Junho, dois dias depois da queda de Paris, o xexé Pétain implora armistício a Hitler. Humilhação suprema: o Fürher insiste que as tréguas devem ser assinadas na mesma carruagem do Tratado de Versalhes (derrota alemã na I Guerra Mundial, 1914-18). Ah pois. Vingança conseguida, Hitler dá ordens de destruição do local. Tudo muito simbólico e terra-a-terra ao mesmo tempo. Em seguida, o turista Adolf pavoneia-se pela Cidade-Luz. O desfile nazi da vitória repete o mesmo preciso trajecto que os franceses tinham percorrido cantando no ocaso da I Guerra Mundial. Nada ao nem por acaso.
A Primavera tinha chegado ao fim. O Inverno iria demorar-se quatro anos.


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Canzoada Assaltante