27/01/2010

Linhas de Jean, a.k.a. Mrs. Taggart

Pombal, tarde de 27 de Janeiro de 2010



E se o coração nos fica como a mulher doente e escocesa do polícia Taggart? Que o fique, mas na vida não perca interesse nem respectivos juros. São difíceis as circunstâncias – mas mais teme quem mais treme. Temer o circunstante é nada activar para o demover. Honesto estudo e dedicada (e delicada) atenção subsidiam a vivência-sobre, que é melhor do que a mera sobrevivência.
Quanto posso – bem, é isto. Assim activei, primeiro, DO QUASE NADA DE TUDO ISTO, e depois NARRAÇÃO DO ANTES QUE ERA, e depois TENTEADOR.




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1. DO QUASE NADA DE TUDO ISTO


I/


O que se sabe disto tudo é quase nada,
a aquarela solar (m)olhando os campos,
a existência transtemporal, porque senciente, dos animais,
as tabelas horárias consumindo corpos e máquinas,
o vento folheando árvores como a livros bons.


Manufacturas de madeira vigiam os rios,
ao longo da vida uma mão mal cheia de sal,
julgo ter-vos falado de semelhantes coisas antes
para que depois, se não alguém, algo me lembre,
nem que ao de leve, uma quarta-feira.


A aquarela solar me olhando, os campos
pautados por altas notas de aves,
o murmurar do fio de água aos pés do trevo,
a carne do musgo perfumando a criança,
além de estampas eidéticas mui formosas outras.


II/


Território de química areia, o pensamento
tem emoções como as casas prateleiras,
sobre que louças e publicações exercem
a disponibilidade de uma coisa que tanto
pode ser a memória como o desejo.


Muito ruído se consome em linha de espera
para o silêncio terminal que afinal abençoa
a pessoa – tanto assim é no insone
preto-e-branco dos sonhos como nas tardes
estádias de uma festa sem alegria interior.


Prospector de remediações avulsas para o mal
sistémico, o relógio cardíaco inventa muito e
mente talvez mais, embora a verdade
e a justiça o sustentem em, apesar de tudo,
alguma graça, alguma piedade, algum silêncio.


III/


A um pobre consola a tangibilidade dos elementos,
que apreçam em alta o ter-nascido, por mais baixo.
Flâmulas de ouropel abonitam o rio dorsal,
exemplo que a lunar argentinidade segue e confirma.
E sei tão pobre quão antes vos disto falei.


Formosa redundância, respirar e viver ao tempo mesmo:
serenada a consciência territorial, a dedicação
ao tesouro público do ar conforma a paz pessoal,
quando se vai ver que barcos chegaram à pátria,
ou que pátria nos sobra em merecimento de barcos.


Com propriedade, o idioma releva e revela
as cerimónias rituais do comer e do beber,
do ler e do escrever, do querer e do querido ser,
do respeitar num animal o poder telúrico,
numa praia a vigília do oceano.


IV/


Vascular, cerebral, acidental, toda a pessoa espraia
suas águas com mais ou menos verba, com verbo
sempre porém. Esta condição activa redime a
da pobreza cosmogónica decorrente da impossibilidade
de entender o tudo do grande nada que incorpora.


Papéis coloridos e doses de vinagre alternam
em seu figurativo coração, da pintura mexicana
aos proletários dizimados dos anos 30/XX
e de todos os outros, digo, anos/séculos, da poesia
moçambicana aos chás calados das senhoras suecas.


Vilegiaturas valetudinárias escoroçoam magmas,
se um vulcão for pensável a tempo, se uma
biologia afectuosa consolar nem que apenas
quinze dias de uma existência de-cabo-a-rabo,
poupadas algumas moedas para pão e cigarros.


V/


Lances físico-químicos esborratam o magnífico
firmamento, que os tristes insistem em reduzir
a deus e a necessidadezinhas domésticas,
da pulga do cão à virgindade suspeita da
vizinha, essa cabra-do-monte etc.

Gurus e citaristas podem beatlezar-se q.b.,
mesmo assim alguns de nós nos sabemos
pouco menos que nada ante tudo o mais.
Ressalva-nos a salvação oratória da grande
música, quando sentir é pensar pelos ouvidos.


Em isto, solta-se a boca, a qual
diz rio, diz semeadura, diz oboé,
diz soalho, diz macieira, diz filtro:
e os ditos repercutem no geral funcionamento
do comércio, que inclui a vida, essa cabra-do-monte.


2. NARRAÇÃO DO ANTES QUE ERA


I/


Era por uma tarde doirada acabando-se,
eu seguia devagar por trilhos do campo,
o fumo tomava em névoa o mundo,
em a casa um animal me esperava,
havia lenha guardada e pão e fruta e café.


A oriente o rio vogava de seu particular céu,
além dos canaviais um rumor de aves tremia,
a casa era de madeira e segurava o chão,
viver era uma distracção bonita e inofensiva,
as botas conferiam a raiz das coisas.


Depois da ceia breve, era tempo de subir aos cristais
que o pano negro alteava diamantinos,
a pauta molhada ouvia-se fluvial,
as pedras sinalizavam o arrefecimento do mundo,
não era outono ainda nem tarde já.


II/

Mas depois foi
agora.


3. NARRAÇÃO DO ANTES QUE ERA


Tenteado tenho a minha vida como as demais,
cidadão do desconhecido vórtice abrasado de frio,
isto é, o mundo e seus arredores autárquicos.
A cabeça feita máquina vocabular, instigo
fartas siderações em torno, à maneira um
pouco talvez do semeador que já não espera, nem
desespera já, viver o próximo estio.
Algum tempo os nomes são pedra, cinza que o
corpo veio para ser e será. Isso mal não tem. Importa
passar além da frialdade das tardes januárias,
quando a enregelada ave não canta nem conta.
Tentear porém conta – e canta.

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Canzoada Assaltante