06/01/2010

T. M. F. R. C. E. M. T.

S. João da Ribeira, Almagreira, noite de 5 de Janeiro de 2010

Nós, os que vivemos longe do mar,
a noite é quanto temos para o imitar.
Como ele poderosa e como ele total,
a noite é o maior mar de Portugal.



Não digo isto por rancor.
Digo-o por assim me parecer.
Tenho dias, tenho tido noites.



Se quisesse (mas teria de querer muito),
a matina seria a minha única celebração.
A idade traz porém que se queira menos.



Manhãs, janeiros, mercados do peixe, bicicletas, primeiras-edições
– coisas que se vai tendo sem grandes anelos de proémio.



A noite acaba de subir as árvores, os parques, as eiras, os estacionamentos,
as pessoas masculinas saídas das obras, paradas dez minutos no café
da aldeia para falar de máquinas, beber um copo, na noite, máquinas,
um copo para o caminho.



Nós, os que vivemos longe do mar,
a noite é quanto temos para o imitar.
Como ele poderosa e como ele total,
a noite é o maior mar de Portugal.

Desmantelaram já, não sei quem, as iluminações de natal,
o mundo voltou a ser civil, boa-fé e boa-vontade voaram para sul
por causa do frio.



Nós, os que vivemos longe do mar,
reconhecemos no ladrar dos cães
toda uma grécia de pequeninos oráculos.



Um velho está muito doente num casal aqui perto.
Os herdeiros rondam, os cães ladram.
Olivais, pinhais, quatro casas de boa renda,
um poço com muita água, duas ou três cabras,
uma porca parideira e os tais cães gregos,
era tudo do velho,
os herdeiros rondam, os cães ladram.



Falamos um pouco por mim, tivemos os meus calções azuis,
os joelhos lacrados de sangue seco, muita saúde por então,
o mais que tivemos foi a ténia, coitada da ténia.



Este poisar devagarinho nos próprios ombros.
Este corvo devagarinho nos próprios ombros.



Nós, os que vivemos longe do mar,
a noite é quanto temos para o imitar.
Como ele poderosa e como ele total,
a noite é o maior mar de Portugal.



Certa vez, julgo que em Coimbra, dois rapazes almedinaram a noite centrífuga, primeiro numa pastelaria perto do Rio, depois não nos lembramos já onde. Um deles éramos mais triste, nome completo nosso Rui Pereira Marques, tinha-lhe-nos morrido o filho único (todos os filhos são únicos, como toda a gente sabe), afogado num charco da Escola Agrícola, foda-se.



Nós, é longe do mar que vivemos.
Da terra também.
Não por rancor dizemos isto.



Dizemo-lo porque dormi umas noites em Cabo Verde, naturalmente num hotel, que abandonávamos às seis da manhã para a estrada cruzar e eu chegar ao mar, o mar quente e hóspito de Santiago da Praia, apesar do lixo de cacos de vidro que juncava o acesso à espera de pés nus.
Tanto oiro de sal e aquela gente tão pobre de propósito, nunca nos entendemos tão bem a vinte contos por dia.



Sei que alguns de nós procurais num poema uma história fácil de seguir, confissões e coisas assim em prosódia para lentos, que toleima a vossa nossa, pedir isso à poesia, posto que a música é a música, a música que, à falta de filarmónica, sobrevive de palavras e de linhas
que não chegam ao fim



e de pessoas paradas
fazendo mal a ninguém
em cafés da eterna província
da poesia.



Nós, os que vivemos longe do mar,
a noite é quanto temos para o imitar.
Como ele poderosa e como ele total,
a noite é o maior mar de Portugal.

Outras vezes
(não esta),
era isto que fazíamos.
Isto – era viver.



Os frutos sabiam.
Digo:
os frutos sabiam na boca,
onde a Língua,
já então,
misturava
sabor e saber.



Que rica esplendorosa tesoirosa coisa ser infante & rosa, verdade?
Verde idade.



Num plano mais humano, mais terra-a-terra, mais terra-mar-e-ar,
as estrelitas são as luzes do casario em frente na encosta da noite.
Agora imitam o céu, não já tão-só o mar.
Imitam as estrelas do céu, os relâmpagos dorsais dos peixes,
sabemos lá aqui.



Nós, os que vivemos longe do mar,
a noite é quanto temos para o imitar.
Como ele poderosa e como ele total,
a noite é o maior mar de Portugal.



Pouco tempo teremos para tanto tempo passado,
de futuro.
Isto se quisermos viver com uma qualidade de vida regida
pela média dita europeia.
A coisa tem andado feia.



Vozes em redor de lona de circo,
de pantalhas chaplinclownescas,
de Largo da Portagem em Dia de Feira da Rainha Santa.
Mais Santa Maria menos Santa Maria,
tudo num homem remonta à
Santa Cona do Assobio,
como dizíamos na tropa enquanto defendíamos a Pátria dos cães gregos,
no meu caso Mafra,
Escola Prática de Infantaria,
8 de Março de 1988,
tinha 23 anos,
já era casado não me lembro contra quem,
raios nos-me partam.

(Parece-me que a qualidade dos versos é inatacável, por mais prosódica pareça, apareça e surja a coisa.)



Pouco muito todo
– Tempo, Mar, Feira, Rui, Café, Espera, Mar, Tempo.

Nós, os que vivemos longe do mar,
a noite é quanto temos para o imitar.
Como ele poderosa e como ele total,
a noite é o maior mar de Portugal.











2 comentários:

Daniel Abrunheiro disse...

Professor has left a new comment on your post "De Sorte que a P. do Tempo":

Ui, Jesus!
Que detritos, sedimentos e moreias, a porra do tempo deixa no seu seco leito de passagem.
Um abraço

Daniel Abrunheiro disse...

Pois é, caro Professor.

Canzoada Assaltante