28/01/2010

Nove Volutas de Fumo


ETAP, tarde de 28 de Janeiro de 2010




1/


Fazer por não deixar que a mordaça vingue mais do que a boca – é a obra dele para hoje, em plano como em acto. Entre pessoas, na tarde com sol, ao colo das horas involuntárias, ele retoma os fios e as navalhas, um pouco assustado e um pouco corajoso. E amanhã, se amanhã? Terá de aprender pela vez definitiva o-que-é-no-que-está. Plano e acto, portanto – e reciclagem de estar-em-ser. Velocipedias mentais escalam a lucidez como o aturdimento. Compreender, ingressar, aproveitar, assimilar, redigir, passar, chegar, contar – linhas de força que o tornarão parente dos elementos: um ser mundial, mesmo que para nada. No fundo como no alto, é a morte: matrícula autora da vida, território intemporal que concede a perene contemporaneidade e a mágica ubiquidade. A mordaça ata o desespero à boca – não pode ser. Transitada a mocidade, gastos os anos médios em que a presença em discotecas não é anacrónica ’inda, a idade final não raro tende a confirmar a magreza das gerais obras da humanidade vulgar. O fascínio desmistifica-se. A crença dilui-se. A esperança é um luxo senciente. As alternativas são socialmente escassas. Daqui, o cultivo da couve como o do verso, o da carpintaria como o andar de bicicleta. Se se for pela anatomia, o mundo é grande. Se ele palpa o seu corpo, sabe-o poroso, melindroso, impertinente, mas leal também – e único veículo. Ele está no corpo que o é, hoje e amanhã, se amanhã.


2/


Volutas de fumo marcam a sudoeste uma habitação de gente com animais e algumas máquinas. Conheço de vista casa, pessoas, bichos e também maquinaria. Tenho andado por terrenos sem esperança nem projecto, andar por andar, os olhos vendo, a boca guardando palavras nas mãos. Excelentes ramagens de magníficos arvoredos ajudam-me a pertencer em vivo. Esta casca que me transporta, esta consciência que me veicula: frondosos desertos. O eu-corpo: também máquina, também bicho, também gente, casa também e também fumo.


3/


Habitação dentro de habitação, o pensamento é um engenheiro destruidor dotado de sensibilidade. Forja de si mesmo uma poesia astuta e redundante: uma carapaça roçadora de elementos. Pessoa é o que se pensa, em sua casa mesma: glândula, hemocirculação, vilosidade, hexâmetro, cantata, fiel-de-armazém.


4/


Quando um eu se escreve ele, é o pensamento a forjar-se-o-me.


5/


Às vezes, como um baque profundo na arca óssea, uma vista plan’alta sobre a vizinha cosmogónica: uma noite pespontada de espirais, o olhar de um cão, o corpo a prumo sobre marco geodésico, a simultaneidade dos amantes, dos comerciantes, do depois com o dantes.


6/


Às sete da manhã, ao livor genesíaco que amedusa o quintal, a criança renasce para a exploração do antigo maravilhoso: estar viva ao mesmo instante das coisas. Lá dentro, na casa, há já um retrato da criança. O olhar fotografado é fiel, mas o corpo reforma-se cada manhã, provindo da noite involuntária. A criança dispõe, no quintal, de cartões, chapas, chão, logradouro, ar, silvas, embalagens, destroços de humanidades milenárias. A criança começa a ser futura pela arqueologia. A língua é já a ferramenta desencadeadora de imagens. A criança é a língua que a diz. Uma dedada de terra pode por ela ser caminhada. Rumo ao monte, pelotões de oliveiras sentinelam o mundo, português no caso, da criança. Uma vinha abandonada por morte do senhor que a erigia: flamas rubro-doiradas. Um lance de sílex: diamante de fingir, faca percutora, o que a criança quiser seja. Rumor de cavalos em quinta próxima: e volutas de fumo tracejando o mapa vertical da casa. Além do seio (a colina), a linha ferroviária. Depois, o Campo, cuja glória recorre a faias, olmos, amieiros, robles, laranjeiras, choupos, salgueiros. Sangra um ribeiro além: veia de frígida prata. Uma fonte mana sob riscos vivos (pássaros). A criança é toda brandura de pés em musgo. Uma figueira, louca de açúcar, explode um pouco acima do tanque onde se diz foi encontrada morta e triste uma mulher sem nome nem família de cá. Cascalhos, saibros, areias, pedrículas, fósseis de cavalos-marinhos, húmus estiolado, urze, giesta, trevo, rosmaninho e dejectos caninos: olhos e pés a caminho, criança veicular recuperada pela escrita dele, que nunca mais será criança enquanto não puder ser deveras velho. Cedros de eterno perfil aprumam-se em labareda verde-negra. Rastilhos de sexualidade animal perfumam o descobridor. O descobridor é a criança. A terra não cessa: acaba um dia, mas nunca cessa. O terror do futuro ainda se não anuncia. Talvez a linha de fábricas que escurecem os adultos. Talvez a imponência dos silos comedores de horas, em breve anos, logo décadas, uma vida. Ainda é agora, nove e meia da manhã. A criança colheu figos, laranjas, amoras, uma maçã baixa. Bebeu da fonte. Não cobiçou a euforia aérea dos pássaros – porque a criança não cobiça, está servida, andando, de seu mesmo voo. Linhas perspectivam a materialidade da luz retratista do mundo. Gloriosa, facunda manhã que a escrita pode fingir apenas. Um pouco triste, se se pensar nisso – coisa que a criança não faz, absorta como segue pensando em casa e na mãe e no estranho costume de embalsamar o olhar em fotografias tiradas pela língua portuguesa.


7/


Gosto da austeridade das nuvens sobre o austero nada do mundo. Embutida no corpo, a jóia relojoeira do coração conta-lhes a brevidade perene. Linhas e cabos riscam de humanidade perspectivas de céu. Sei sempre extrema a unção fluvial. Conheço a introspecção das abluções, ao renascer cada dia para uns metros mais e mais umas horas e umas nuvens mais.


8/


Não fora a dor insensatamente criada e valera pouco o viver ensimesmado em convulsa febre: qual dos outros a habitação, tal nosso o casebre.


9/


Carolina Joaquim, 80 anos, Charneca da Cotovia, Sesimbra, mortalmente atropelada.
José, 52, suspeito de pedofilia, Bairro do Viso, Porto, preso.
Rapariga, 17, comboio de ligação Portela de Sintra – Mem Martins, assaltada.
Homem, 51, Peniche, conduzia com 3,42 g/l álcool/sangue.
Rapaz, 15, Carregado, ladrão por esticão, identificado.
Grupo de três homens, violento, assaltante de carrinhas de tabaco, em bairro da Vialonga, Vila Franca de Xira, capturado.
Paulo Romeu, 40, Soalhães, Marco de Canaveses, ferido em acidente de viação, teve alta.
Abílio Rocha, 31, mesmo acidente, morto.
Também mortos, mesmo acidente: Leonel Sousa, Carlos Alexandrino, André Queirós e António Barros.





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Canzoada Assaltante