Pombal, entardenoitecer e noite de 19 de Janeiro de 2010
ESTRELA UM
Para bandas de Ocidente, farrapos de cinza sujam um pouco a pureza do último azul do dia. Há um homem que entardenoitece com o rio no tabuleiro da ponte. Escurece o pomar de laranjeiras desta margem, da outra margem já sublinham a noite as cinco letras de luz: HOTEL: com três estrelas também de luz por baixo. Isto de estar vivo é muito bonito. Ter dentes estragados não é bonito, mas viver não é mau de todo. Por não ter ido nem para a música nem para a pintura, estou condicionado ao que do mundo sobra aproveitavelmente em literatura, de modo que farrapos de cinza sujam um pouco a pureza do último azul do dia, para bandas de Ocidente.
Senhora não velha de cabelo acobreado em salão de alegada beleza, camisola de um roxo forte com listras brancas a atravessar como uma zebra psicadélica, calças de cinza esmaecida, boas botas de castanho com tachas de ferro sonoro, unhas manuais do mesmo roxo da camisola, anilha de casada arrulhando amarela no dedo. Toma carioca de limão e está só: olha muitas vezes para o telemóvel mudo.
Rapaz de ventas encarnadas, olhos espirrados de estrias de bebedor, nariz frio, branquiça derme, roupa má de solteiro sem hábitos de faxina pessoal, péssimas sapatilhas taiwanesas, certa infelicidade maciça no geral. Não está só: bebe cerveja com três ciganos de pertinente tez de cagalhão, bem arreados de farpela e calcante, anéis com fartura nas garras, perfis egypsyos. Também falam.
Agora, o alto fundo pano preto da noite já a tudo e todos se estendeu, mais rebrilham as cinco letras três estrelas de HOTEL ***. Gosto sim disto tudo. A vida é um estendal de belezas. Tristes? Sim, muitas, quase todas. Não tem mal. O truque, a havê-lo, é sobreviver com base no consumo da consciência em proveito de uma pretensa arte fotográfica de cariz verbal (farrapos de cinza etc.). Não é? Pessoas, as roupas delas, os sapatos sobre que elas. O que tomam, como fumam se fumam. Estilhaços de frases delas e em torno delas, cromia da paleta de naturismos: digo: nuvens, bandas cardiais, laranjais, rio com ponte e homem. Muito mais, naturalmente, por natura naturans e por natura naturata.
Rostos como perfis de moeda lunar. Mãos maravilhosas (todas o são, sério) como estrelas *** de HOTEL. Cães (maravilhosos todos, sério). Quadrados de oiro pespontados em pano preto: janelas acesas na noite. Aragem fria descendo da serra, gaze selénica em spray fumigado até as asas do nariz, a orla marítima do desejo erótico, a fímbria aquífera de algum olhar pousado em ti, ângulos verdes, contratos-contra-ratos, gatos principescos (todos o são, sério), a maravilha vulgar do pequeno comércio onde nos chamam pelo nome, silhuetas como códigos-de-barras à contra-sombra de paredes, refúgios da chuva em pastelarias dormentes de mornidão, é bonito sentir de longe a mudez dos televisores, o hipnotismo estupidificador das telenovelas brasileiras, o hipnotismo estupidificador das telenovelas portuguesas, isto mágico: um livro de versos de por exemplo Rui Knopfli muito em segredo no bornal e entrar com bornal e Knopfli numa casa-de-pasto decente e sossegada e ficar a ler sem contar as horas nem a vida nem a morte nem nada de família.
Tudo é tão possível quão passível. Fuso, fuselagem e fusível. E tudo é palco, que todos somos artistas. Vincos voadores realinham a esquadria celeste: a gaivota, o periquito fugitivo, o balão a hélio solto das mãos da menina, a casca de banana atirada janela fora do comboio, alguma palavra perdida, aérea. Simultaneidade de quanto é e há. Aceitação (mas calada) da necessidade de um deus para colmatar buracos na parede existencial. De vez em quando, o vulcão que desperta, a terra que treme, o mar que aterra, a chuva que não cessa, o fogo que arde até a água. Os, enfim, magníficos horrores do tal deus, da tal distracção horrorosa e magnífica do tal deus.
Mas agora, agora na noite nova como a esperança e como a amargura antiga, é passear a alma-álea-alameda pelos rincões mais invernosos da terrinha, sentindo a rouquidão vigilante dos cães nos pátios, a analgesia moral das viúvas jovens, a solidez betoneira dos polícias, a geometria maçónica das dimensões espaço-tempo tão evidentes no ritual do comércio que encerra portas até que amanhã. Sim, agora na noite a beleza é portentosa, tachas de bom ferro em boas solas de botas boas, pedras de chão, lâminas de plúvia olhando janelas e firmamentos recortados em esquinas altas de prédios, prédios, prédios, tédios. Sim, mas é claro, homens procurando frango em casas de vinho & pão & azeitonas, há futebol não há futebol, há poemas à guitarra não há poemas à guitarra. Cófibreique.
De retorno ao lar, confiro a permanência da ponte que atravessa a ausência do homem. O carro ronrona no tapete de alcatrão. Para bandas do Ocidente, chumbos toutinegros catrapiscam estrelas *** de HOTEL, na noite da minha vida tão bonita tantas vezes ao dia, triste?
ESTRELA DOIS
Mãos e cães partilham este mundo irmãomente.
Estágios profissionais decorrem em normalidade.
Farrapos de cinza sobre o azul a Ocidente.
E deus não deu nem dá foros de cidade.
ESTRELA TRÊS
(Palavras havidas e ouvidas de pessoas na noite:)
São os primeiros a perceber os próprios logo a dizer
Os melhores continuam a ser os melhores e nada mais
O Frederico sempre muito caladinho mas melhorou muito
E depois nós obrigamo-lo nomeadamente a transmitir segurança
Estava cá muita gente pelos 500 euros
Até já ajudo a minha filha a fazer isto quando tenho dúvidas
Face às exigências no local de trabalho
Quais é que estariam aptos, percebes?
Ele ia ser um bocado intragável
Na obra é muito importante em termos técnicos dialogar
Se forem construir uma moradiazita é diferente
Dezenas e dezenas e centenas de situações diferentes
O Frederico não sei se a timidez dele não vai prejudicar
Ele é que tem de subir e descer e descer e subir
Para quê?
Para lidar com as partes
Não estão a conduzir nem a chefiar uma equipa
Eu espero que eles não vão chefiar de repente
Não há nenhum que saia logo daqui em condições
Ela é esperta
O que ela não apanha
Eles por vezes surpreendem a entidade patronal
Na construção na sua maioria são energúmenos
Mas isso prontos o mais importante é mostrar
O quê?
Vontade de trabalhar
Se eles forem humildes vão fazê-los chegar a bom porto
Até pode ser uma verdade absoluta
Ninguém pode dizer isso no primeiro mês em que chega
Disse-lhes isso dezenas e dezenas e centenas de vezes
Explique-me que se passa
Diga-me lá assim-assim
Percebes?
Se calhar a sua maneira também é fixe
Mas não é fácil
A maior parte do que foi dito concordo
Dez vezes melhor
Não sei como é com outra gente
Esse tem de ser obrigado a desistir
Eu queria
O Abel não desistia
Ele não queria
Eu queria frisar em Janeiro
Chegava tarde descontraído
Tem muito interesse por tudo o que aprende
O Frederico o Zé Lopes o Hélio o Ferreira é assim
A diferenciar a postura
Aconteceu alguma coisa
Mudou completamente na minha opinião
Está a fazer um tratamento
Ele evolui bastante sempre vos digo isso
É
Das três raparigas ela é
São quatro
Das quatro raparigas ela é a mais inteligente
Se nos sentarmos ao pé dela com cuidado e paciência
Não quer dizer que tenha o melhor a dizer na geral
O próprio relacionamento entre eles é bom
Comparativamente
Ódio e maldade
Têm as suas particularidades
Não sei se hei-de ir fazer o mesmo com este
Marcarmos uma tarde para todos juntos fazermos aquilo
Eles próprios e o produto final
Dar um espaço
Dar um tempo
Um balanço final
Uma despedida.
(Pavilhões auditivos meus abençoados, abertos ao mundo, às catástrofes, à pureza derradeira do azul em olhos, rosto dado a lunaridades benignas, asas de nariz voadoras de laranjeiras, dava-me jeito esta terça de manhã.)
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