Manhã, Tarde, Entardenoitecer e Noite de 15 de Janeiro de 2010
1. MANHÃ
Em redor da casa o mundo existe e faz-se ouvir: o vento em voz voadora, os carros de dois lugares municiados uns de bolachas, outros de café, outros de tijolos, outros de cabos eléctricos. Dentro de casa, a acumulação de tempo, a museologia de cada hora: a casa, portanto, como um poço de água com diamantes no fundo.
Muita arqueologia resulta do pensar sentidamente as coisas, tais como as datas, os degraus biográficos individuais da larga escadaria humana, os consumos estupefacientes, os governos à direita e ao centro e à esquerda-direita-volver.
As caixas mágicas revelam e relevam a pobreza nuclear da vida à medida que a confirmação da mediocridade sustenta a sobrevivência mental q.b.
Uma volta pelos cafés, horas sem ser de ponta por avenidas largas, um desejo de cheirar maçãs guardadas em camas de madeira ao longo de paredes de pedra sobre chão térreo.
Como sempre, os gorilas, os tigres, as pombas e as senhoras convivem à sombra da lei fundamental da nação, os gorilas segundo a Carta, os tigres mais pela Monarquia, as pombas às migalhas e as senhoras como as pombas.
Uma volta pela casa, pelas mãos de Schumann ao piano da cassete esquecida anos a fio numa gaveta baixa, a casa perfumada de fruta de lata, de plantas teimosas que suportam a gaiola de cada vaso, a vida de dentro aqui dentro.
Num caderno de capas vermelhas duras, a nota a lápis: Tinha tido duas filhas de mulheres diferentes, que desapareceram com elas em nevoeiros diferentes.
Noutra página do mesmo caderno, ao mesmo lápis: Músicos e mosaicos / a minha vida tem passado. / A minha vida tem passado /por organizar sons chegados / do quase-nada, de um pouco / quase louco sempre rouco / de atenção.
Noutra página do mesmo caderno, ao mesmo lápis: “Caganifâncias” – Guerra Junqueiro, em carta a Alberto de Oliveira a propósito do Só de António Nobre versus Os Simples do mesmo Junqueiro.
Noutra página do mesmo caderno, ao mesmo lápis: Timothy Blackburn – assassino & ladrão (ano 1999, mês de Agosto).
Noutras páginas do mesmo caderno, ao mesmo lápis, uma catrefada de nomes/referências os/as mais díspares: Deus do Fogo – 18-8-1940 – Batalha de Inglaterra – pior dia – 1000 bombardeiros – 754 caças (Alemanha) – 630 caças (Inglaterra) – Bob Doc aviador inglês – Peter Brothers piloto de caça – Luftwaffe/RAF – 7 de Setembro de 1940 pelo final da tarde mais de 1000 aviões – campos do Sul – colinas de Kent – docas de Londres – refinarias da zona Leste da capital inglesa. // Babik – Django Reinhardt & Ben Sidran. // Theophile Steinen – desenhos. // Eugene Weidmann – guilhotinado 1939. // Elegie viola solo – I. Stravinsky. // Dorothy Dandrige – singer. // Geraldine Laurent Trio. // Vernícomo – que nasce no tempo quente. // Duke E. – The Mooche. // Stevie W. – Lately. // Wes Montgomery. // Adusto – queimado, árido. // Lábaro – pendão, estandarte. // Pintor José de Ribera. // Portos de Siracusa, Catania e Messina. // Golfo de Gela. // Sicília – 25.700 km2 – Scoglitti – Pachino – Avola – Troina – Caltanissetta. // Baltimore Chattanooga Choo Choo Train. // Dezembro no Canal da Mancha. // Larry Colburn – soldado USA no Vietnam. // Dean Corll – murderer, serial killer – cúmplices David Brooks e Elmer Wayne Henley. // David Gore – assassino – Veno Beach – Florida. // Estesia/Anestesia. // ConfIssionário. // Recticórneo – de cornos direitos. // Refece – vil, infame, miserável. // Estender/Entender. // Lav(r)adeira. // Acer(t)ado. // Rio/riso/rico/risco/corisco. // Dan Castellaneta / Julie Kavner / Nancy Cartwright / Yeardley Smith / Hank Azaria / Harry Shearer / Marcia Wallace / Pamela Hayden / Tress Macneille / Karl Wiedergott / Matt Groening. // Music – Patrick Gowers (Sherlock Holmes). // V. Father Karras (The Exorcist). // ancestry.co.uk – Ripper. // Edmond Haraucourt, poète auteur de Seul. // Lia Beldam / Billie Gibson / fantasmas quarto # 237 – Shining. // Wheat / Kendra Torgan / ass. It. / “Killing Time” filme. // Filomena Moretti – guitar. // Liebknecht / Rosa Luxemburgo. // Th. Roosevelt. // Mme. Curie. // Deauville, 1919 / Epson / Auteil / Albion / sufragistas / acrobacias aéreas / Belle Époque. // 1919 / Tamagnini Barbosa – Port.. / Alf. Botelho Moniz / Ten. Cor. Vieira da Rocha / Capit. Tenente Júlio de Cerqueira (Marinha) / Moniz Barreto Nobre – 1895 – Paris / Álvaro de Castro, Santarém, 1919 / “Egas Moniz”, peça de Jaime Cortesão / Prof. Egas Moniz representa Port. na Conferência de Paz da I GM / Monsanto, insurreição de esbirros monárquicos / Cor. Mineiro de Almeida – alistamento de civis / Júlio da Costa Pinto / Aires de Ornelas / João de Azevedo Coutinho – presos rebeldes de Monsanto / No Porto, “restauração” da Monarquia / Junta Governativa do Reino de Portugal / Presid. Paiva Couceiro / MNE – Luís de Magalhães / Corpo de Polícia, Vigilância e Defesa da Monarquia – “Trauliteiros” / CMDT da “Coluna-Relâmpago” Sá Guimarães / Em Viana do Castelo rest. Monarquia / Viseu – Cavaleiro José Casimiro, Administrador / Aveiro, centro de op. mil. / Coimbra – Batalhão Académico para Defesa da República / 2/12/19 – Manif. favor Ch. Gov. José Relvas / Novo min. do Trabalho – Dias da Silva, soc. / Combates violentos em Mirandela / Teatro 1º Maio QG Monárquicos / Republicanos, Gen. Abel Hipólito, Gen. Costa Ilharco CMDT Supremo / Em Aveiro, Bento de Almeida Garrett do Real Grupo de Trauliteiros preso por Alf. Roby / Clube de Fenianos do Porto – assaltada a sede / monárquico Jorge Camacho assassinado no Terreiro do Paço mesmo sob escolta / Estarreja – obj. dos governamentais / Min. Justiça – Couceiro da Costa visita linhas triunfantes republicanas / Republicanos, Cor. Djalma de Azevedo, Cap. Echiappa Monteiro de Carvalho /Padre Domingos Pereira preso / Conde de Mangualde Gov. Civil do Porto sob a revolta mon. (25 dias) / Silves e Ponte de Lima festejam vitória republicana / Café Camões no Funcha / PR Canto e Castro / 21-2-19 – comício no Coliseu com sequelas trágicas (tiroteio – 6 mortos e 40 feridos – fugindo das balas perdidas) / Ten. da Armada Prestes Salgueiro Gov. Civil de Lx. / 25-X-1918, morre Amadeo S. Cardoso em Espinho.
E com a morte de Amadeo – morre a manhã do Dia.
2. TARDE
Em redor da casa o mundo existe – e nele chove boa cópia de águas diagonais, álgidas. Defendo o corpo com um almoço enfartador: pratada de lâminas de batata cozida com ovo idem e a maravilha de Catita – Sangacho de Atum em Óleo Vegetal, autêntico poema alimentar dos pobres de espírito e corpo a consumir no Dia da Abertura, Peso Líquido 120g, Local de Fabrico / Consumir de Preferência: Ver na Lata (PT C211 2P CE L9999 31/12/2013) / Ingredientes: Atum (Mín. 65%), Óleo Vegetal, Sal / Apoio ao Cliente: + 351 217 997 200 / E-mail geral@coresa.pt / www.cofaco.pt. Pão enxugando o óleo vegetal, café feito de fresco aguardando sobre a madeira da mesa.
Notícias da tragédia haitiana a todo o momento na televisão, estimados para cima de 100 mil mortos pela Santa Graça de Deus. Raios O partam.
Projecto pessoal imediato: leitura de Anna Seghers, uma vida e uma escrita alemãs entre 19 de Novembro de 1900 e o dia primeiro de Junho de 1983. Também o Eça de Notas Contemporâneas e o Gorki de Infância. Muito João Miguel Fernandes Jorge relido entretanto: prazer tranquilo em tranquila revisita às palavras dele. Pela mão gráfica do Poeta, em a simultaneidade possível, visita auditiva ao Webern de Passacaglia Opus 1 e visual à escultora Louise Bourgeois: aprende-se muito mundo, na poesia também, como não!? Em outro projecto, retornar a 1943 e a bordo do USS Elridge a ver que coisa pode ser apurada de uma tal Philadelphia Experiment. Uma volta por Djavan, também e entretanto, mais Abbey Lincoln, Sting, Lisa Ekdhal, Blossom Dearie, Joe Strummer, Madeleine Peyrou, Mal Waldron e Ron Carter: uma volta feliz.
3. ENTARDECER e NOITE
Às 17h22m, a noite já sangra no que resta de pele de luz. Janeiro à força toda, gato transido de frio, açoitadas árvores ao gelo da atmosfera. É bom ter casa. É bom ter lume. É bom ter Anna Seghers, Sinclair Lewis, Carlo Coccioli, Frei António das Chagas, Anne Perry, Nicolas Freeling, Daniel J. Boorstin, a seita (quase) toda.
Também algumas visões:
Folhas à flor de um lago outonal;
Um V sulmigratório de aves altas;
Um plano de céu envernizado de frio;
Mãe e filha contando-se coisas engraçadas e rindo juntas;
Merenda do guarda do crematório: fruta verde, iogurte amarelo, sandes de paio, garrafa-termos de chá;
Fímbria de água fria e azul em uns olhos;
Agenda antiga deixada por pessoa que amou e foi amada;
Miniaturas de músicos filarmónicos em barro;
Pilhas de lenha verde esperando força de homem;
Funcionários públicos almoçando sandes triangulares de pasta de atum com maionese caseira, tomate e alface da compra num banco de jardim também público:
Rapariga de cabelo-açafrão gingando de bicicleta em paralelo a via-férrea;
Um livro acabado de compor e imprimir no dia 9-6-1975 pela Atlântida Editora, S.A.R.L. – Pedrulha – Coimbra;
Letras alemãs formando dois títulos: Der Bienenstock e Austflug der Toten Mädchen;
Um cidadão do Gana comendo uma maçã encarnada na Rocha Conde d’Óbidos;
Um cidadão venezuelano fumando uma broca de haxe ao pé dele.
As visões de uma pessoa (oftálmicas ou figurativas, isto é, reais ou não) reflectem a pessoa que reflecte: são espelho de espelho, portanto. Uso consciência disso, ao cabo da luz do dia, iniciada a noite. Acresce às visões uma enumeração de Ilse Losa, a plumitiva prefaciadora do tal livro composto e impresso até 9-6-1975 (Anna – na tradução Ana – Seghers, Antologia do Conto Moderno, Atlântida Editora, S.A.R.L. – Pedrulha – Coimbra), relativa a autores alemães: o naturalista Gerhart Hauptmann, os neo-românticos Stefan George, Rilke, Wassermann, Carossa, Hugo von Hoffmansthal, Ricarda Huch, Herbert Eulenberg, o paladino do neo-classicismo Paul Ernst, os expressionistas Heinrich Mann, Walter von Molo, Franz Werfel, Klabund, Leonhard Frank, Barlach, Stefan Zweig e Zuckmayer, o inrotulável (e genial) Thomas Mann (irmão de Heinrich), o “místico e simbolista”, segundo Ilse, Hermann Hesse e os neo-realistas Bertold Brecht, Ernst Glaeser, Ernst Weiss, Plivier, Arnold Zweig, Traven, Remarque, Georg Kaiser, Ernst Toller e Anna Seghers.
Então não se está sozinho.
Vê-se o dia.
Lê-se a noite.
Uma pessoa ao pé de um rio.
Um rio aos pés de uma pessoa.
E o Dia ganho.
1 comentário:
uma boa ideia. muito dramática
:)
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