09/07/2005

Mais dos Autores

"É a voz dos mortos insistente que teima e se nos impõe."

Raul Brandão, Húmus

Há pessoas mortas que teimam em falar-nos. Pior, talvez, que isso: teimam em fazer de nós personagens dos sonhos delas. São os Autores. Mortos como homens e mulheres, mas vozes ainda, ainda vivas e teimosas.
Estou sentado no cais ferroviário de Coimbra-B, talvez por isso escreva o que escrevo neste caderno de viajante físico entre destinos mentais. Corre um vento frio, mas não frio de mais. Um pouco de optimismo é quanto basta para chamar amena à manhã fria. Não sinto, além da presença volátil do vento, quase nada.
O "quase" exclui as vozes dos mortos que teimam. Não tenho dificuldade em percebê-los. Aliás, nada é difícil. Tudo é tão fácil, não? (Sei que falo sozinho, falar mesmo, enquanto escrevo sentado no caderno, não, sentado num banco de Coimbra-B, sim, sentado no caderno, falo sozinho como um velho ou uma viúva ou um pássaro, não espero resposta, e a minha voz torna-se, por assim falar, igual à dos Mortos, à dos Autores.)

Passam dois dias (13 para 15), já não leio "Cakes and Ale", acabou-se-me, encontrei outro livro, agora não interessa qual. Estou outra vez sentado (passo a vida a tentar pôr-me de pé), mas desta vez no Café Esquina, em Pombal. O estabelecimento enfrenta a noite exterior de vidraças decoradas com motivos natalícios. Fecha às sete e meia da noite: tenho 37 minutos antes de ser expulso com delicadeza pelas duas raparigas que, de sorriso esbranquiçado de fadiga, me dirão "boa noite" sem pensar no que dizem. Diz-se "boa noite" como se diz "bom dia": como se fosse a mesma coisa.
A 29 minutos do encerramento, duas mulheres entram no café e recebem "boas noites" de um dos três homens que conversam de pé ao balcão. "Se não chover", responde a mais velha de ambas. A outra é muito jovem, não deve ter 20 anos. A da chuva já passou os 30. São clientes habituais: já as vi naquela mesa, tomando o de sempre, café com leite e tostas mistas. A última vez que as vi, eu ainda bebia, portanto não foi há tanto tempo assim. E dizer "ainda bebia" quer, é claro, dizer 'álcool'. 'Beber' é 'álcool'. Que será o resto?
De qualquer maneira, na manhã de anteontem, em Coimbra-B, eu vinha de casa de minha Mãe. Ela tinha caído, às 8 horas da manhã, no quintal-estádio. A geada e a condição de octogenária uniram-se para fazê-la tropeçar. Como não tenho carro (estoirei-o devidamente quando bebia), chamei o meu irmão mais velho, que a levou ao hospital. Apanhei o comboio até aqui enquanto no hospital lhe diagnosticavam e tratavam o pulso fracturado. O esquerdo, o pulso esquerdo, onde a presença do coração é diferente da que se conta no direito, não sei porquê.
7 e 13 da noite. Se pudesse, adiantaria o relógio doze horas, evitando a penúria da travessia da noite. À minha frente, todo o novo dia. Talvez amanhã.


Coimbra, manhã de 13, e Pombal, noite de 15 de Dezembro de 2004

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Canzoada Assaltante