Desistiu de tentar compreender-se e juntou-se ao vasto exército daqueles que foram colhidos pela noite, daqueles que não seguem o coração nem a razão, e que marcham através de frases feitas para o seu destino.
E. M. Forster, Um Quarto com Vista
Entrou no café às sete e meia, sentou-se ao balcão e descobriu no espelho da estante de garrafas o primeiro olhar triste do dia.
Bebeu o que tinha a beber, decidiu não comer o bolo de carne de outro dia, passeou os olhos pelo jornal. Falaram com ele, eram os da fábrica. O futebol e a pouca saúde do filho foram os temas que desenvolveu.
Ouviu queixas laborais, palpites do loto e futebol.
Foi trabalhar entre os outros. Entrou na fábrica às oito, saiu ao meio-dia, entrou às treze, saiu às dezassete.
Entrou no café às dezassete e dez, ficou em pé ao balcão e não olhou o espelho.
Conversou e sorriu até às vinte e um quarto, foi jantar a casa. Ajudou a dar banho ao filho, a vesti-lo. Disse que precisava de uma camisa lavada. Despiu a suja e lavou-se de pé, sempre sem olhar o espelho. Saiu fresco para a noite.
Este homem desapareceu, vou falar dele.
Conheço-o desde sempre. Talvez mais agora, agora que desapareceu. Conheço outras pessoas, também me acontece. Tenho falado e escrito em torno delas, babujando-lhes de seda a cabeça, as orelhas. As pessoas são emanações. Têm uma estrela dentro. A luz sai delas e mistura-se com as nossas sombras. Nasce uma cor nova: o conhecimento. Também me acontece saber que a escrita me faz misturar tudo: pessoas, jardins botânicos, orlas de praia, normandias e tachos de esmalte, fogo e pó, terra e memória. Isso acontece-me muito, embora eu não tenha desaparecido. A pureza é uma arte híbrida.
Nesta situação, reconheço que falar desse homem pontual e desaparecido me vai fazer invocar os espíritos de outros, quando me perguntam se quero o costume. “O costume”, respondo.
Digo: “O costume”. Digo isto sentado ao balcão, no mesmo banco da última manhã dele, aceito o café e o copinho de conhaque nacional. Maio segue quente e abafado, alta pradaria de trovoadas. Chove água quente. Como as árvores dão frutos, a vida dá dias. A infância é um dia único, um dia parado, um dia surpreendido pelo flash perpétuo da fotografia.
Ele desapareceu, mas eu conservo-o na armadilha da infância. Éramos dois rapazes da mesma rua. Os anos mataram-nos como crianças, obrigaram-nos a uma adolescência atormentada pela sexualidade da música slow. Quase sem ler nem escrever, estávamos adultos. Ele casou-se, fez um filho que nasceu doente, o pai arranjou-lhe para electricista na mesma fábrica. Eu fui para a cidade estudar literatura, mas às vezes encontrávamo-nos no café. Eu perguntava-lhe do filho, ele, do que eu lia.
Como sempre acontece com os desaparecidos, o último dia em foi visto é claro como um horário. Onde esteve, o que disse, o que parecia. É como se eu ouvisse falar de um santo ou de um afogado.
Vivi uma manhã boa. Ouvi Paredes, li Quiñones, adormeci por meia hora, tomei um banho à temperatura de uma canja das antigas. Almocei presunto e papas de chocolate. Ao café e conhaque, a notícia de ter desaparecido chegou-me como um bocado de madeira de naufrágio chega à praia. Não sei quanto tempo vou falar dos espíritos, ele entre eles, como se estivesse a ir para a fábrica ou a vir dela, um entre outros, a cara triste e bonita de homem-pai.
O conhaque barato sobe as paredes de dentro da minha cara. É um calor bom para o corpo manter na tarde de chuva. Começo a viver de cor, como se haja alguma coisa, ou alguém, que me esteja lendo. Os espíritos dos ausentes vão voltar à minha cabeça, de onde descerão para a mão direita, que há-de desampará-los num maço de papéis. O desaparecido já pode aparecer. Escrevo que reaparece.
Reaparece vestido com as roupas do meu primo, o que morreu em menino. Deitado na morte, o menino-primo vestia camisa vermelha sob um casaco preto que o não aquecia. É possível que a camisa do homem-pai seja a mesma, os espíritos usam ardis. Lembrem-se que ele pediu uma camisa lavada. Estou a viver isto.
Importa menos e menos. Ele desapareceu, os dias desaparecem. É tudo um fumo. Vem outra manhã. Estou de férias. Tomo o costume a uma mesa de janela. A chuva persiste. Leio um volume inglês. A rapariga ama um mas está noiva de outro. Isto também acontece cá fora. Fecho o livro. O meu primo está ao balcão. Roda a cabeça. Vejo a camisa vermelha. Fecho os olhos. Abro os olhos. Não há primo. Pago e saio. Não espero pelo autocarro, vou andando. Desço numa rua estranha. Os prédios têm persianas verdes. Dentro dos prédios, advogados ditam cartas. No termo da rua, há uma igreja fechada com Cristo fechado lá dentro. Ando muito.
Camisa vermelha. Tive um tio. Foi-se embora muito antes de eu nascer. Nas famílias sem Deus, dizem às crianças que os mortos se foram embora, não lhes mentem com o céu, mentem-lhes com viagens. Dá o mesmo. O tio ainda é um nome lá em casa. Falam do cabelo dele, entre o castanho e o vermelho, da graça melancólica que trazia dependurada da alma como um fio de ouro baço. Esse tio contou ao irmão, que depois foi meu pai, ter visto o Diabo a dançar no cimo das espigas de milho. Era vermelho, o Diabo, como uma camisa de desaparecidos.
Os anos tornam-se números. Desapareceu aquele electricista da fábrica de porcelanas, o do filho doente. O meu corpo de rapaz: também ele desapareceu. No outro dia, um vento tomou-me a esquerda cara. Na cabeça, apareceu-me escrito: “Perfil de jogador do Tottenham, década de 70”. Arte de pancadas, viver.
Qualquer dia, voltam as férias. O verão também volta, fingindo-se o mesmo daqueles anos em que éramos filhos apenas, eu e o desaparecido. Com os anos (os números), o verão perde a enormidade amarela de que era feito. Torna-se um mero par de meses altos. Nada de especial. Gosto da chuva, da preguiçosa tristeza dos dias nublados, mas o verão abre as águas do corpo. No verão, é o meu corpo que chove. A noite chega como um livro de amantes, corteses fantasmas. A lua é morna, o céu deixa ver todos os cantos do nada, a terra dilatada abre-se em suspiros foscos, o cheiro da água do corpo toma sentidos na História, o olhar açucena-se-me, respiro a exaustão dos cardos, do panasco, dos espargos, do rasto de ouriços. Este não vai ser o verão em que ele volta. Nunca mais volta, vai haver outono, cama do inverno, vai estar o verão de outro ano, outro número, quem há-de contar tantos números, ele não. Conto eu.
Para lá e para cá, os autocarros municipais levam e trazem as hordas embrutecidas pelos baixos salários. O caixeiro da Sapataria Luxo, a rapariga do dentista Cláudio, o louco reformado aos vinte anos, a viúva carunchada de osteoporose, os desaparecidos íntimos: todos metidos na pinha amarela da Câmara. As respirações tapam a visão das janelas. Glauca, a carreira pára nos sítios combinados. Exclamações abafadas, calos pisados, trocos difíceis, aroma de gente fechada. O suor alastra como sangue pela roupa. As camisas ficam vermelhas. As pessoas saem, as pessoas entram: aparecem e desaparecem, como não escrever isso?
Escrevo isso. A finura do ar frio cristaliza o nariz, o sangue brilha no interior do corpo, o oxigénio abre uma gaveta no meu cérebro, essa gaveta em que vive, ubíqua, perpétua, uma tal gente do touro de ouro. Ali estão. Para que adultos cresceram as então crianças? Que juncos se tornaram? Não estou na história de Sophie, figura de fotografia esmaecida, aquele rosto-altar de beijo de mortos quando vivos, o sabor a nuca na boca. Oh, mas de mortos sem cheiro e sem dor! Antes de mortos limpos, de polida pedra cada osso, limpa terra toda a carne, só depois epigrafados com sensatez e ortografia por um cinzelador que bebe vinho branco pela manhã no café onde o desaparecido.
No café do desaparecido, retenho um pouco mais esse livro sobre que falámos. Ele gostava de saber o que leva uma pessoa a embalsamar os seus vivos na literatura, eu tentava pensar enquanto lhe respondia que as pessoas são uma coisa e as personagens são outra, e ele porquê, e eu não sabia dizer. Ainda não sei. Disse-lhe que a tua vida seria outra se fosse deposta num papel, como acontece às flores quando são fechadas dentro das igrejas. Ele dizia que era um electricista fabril, mais nada, eu dizia-lhe que sim, que tudo é mais nada, que é disso que os livros falam, então por que falam, queria ele saber, e eu não sabia. Claro que lhe falei de Forster, de James, de Osório, de McLean e de Quiñones. Ele ouvia com muita atenção. Depois falávamos de futebol e dava o mesmo, os jogadores eram personagens parecidas com anos: números nas costas. Éramos do mesmo clube, uma cor que perde mas tão bonita, cor de camisa de desaparecido, de diabo bailador de cimo de espigas. Partilhávamos pão e carne frita para almofadar as infusas de vinho branco que nos subiam a voz até os olhos, esses berlindes com que jogamos à dor e à memória.
Agora desapareceu. Eu estou para fazer o mesmo, mas a vida bate-me com a correia de um relógio nas costas, de modo que vou ficando, andando fico. As noites mal dormidas naufragam-me na costa suja da manhã de autocarros. Trechos da gente do touro de ouro voltam-me na cama. Espermas colados a sangues, gerações e diabos vermelhos rodando cálices de milho nacional. A formosa inglesa encurrala o médico e exige-lhe o nome do mal que lhe mata o homem, o engenheiro bom. O que é feito?
Janelas siderais, cometas de banda desenhada traduzida em português do Brasil. Nomes que ficam vivos, porque de personagens: Séneca, Denis, Virginia Loobo (dois ós, sim), Fonseca, Oliveira, Federico, Machado.
Lembro-me de lhe dizer: “Há gente que pensa que a poesia que vale é a sentimental, fazem da poesia um pronto-a-despir de sentimentos de roupa velha, porra!” Era o vinho branco, claro, mas ele interessou-se:”Então qual é a que vale para ti?” Eu ri-me da seriedade dele. E disse-lhe: “Olha, prefiro o caga e come que não passas fome, vale mais que essa merda toda do coração e perlimpimpão…” Ele também se riu e perguntou-me se eu estava a falar a sério. Eu pus-me sério e disse-lhe que sim, que muito. E então apareceu-me na cabeça aquele verso de Afonso Duarte: “A vida não se passa, não se conta”. E então ele ficou muito sério e disse: “Compreendo.”
Depois, suponho que se juntou “aos vastos exércitos daqueles” de Forster. Mas, tantos anos-números antes disso, ele era comigo um menino do monte e da rua e gostava do Arsenal de Londres (não do Tottenham), ardia a TV a preto-e-branco do fascismo católico. Foi por essa época que desapareceu o meu primo-menino. Antes de desaparecer de todo, vestiram-lhe aquela camisa vermelha, como se sangrasse ainda na quietação da morte. Pássaro de cara de cera voltada para o tecto, eu e ele o vimos na tarde sem redenção do velório. O que desapareceu agora e o primo-menino são hoje linhas do novo livro.
Entretanto (entre tão pouco), a gente do touro de ouro organiza o seu húmus: carne a caminho da lama, osso rumo a pedras. As estrelas intestinas urdem fogachos na memória: preciso de não esquecer, preciso de não me esquecer.
Se andassem por aqui (todos eles), beberiam o ar do monte, o ar refrescado pela pele do céu anoitecido com brandy e brandura e pela passagem poderosa dos comboios. Ouviriam da minha boca o que vou aprendendo da edição crítica de Poeta en Nueva York, o livro de Federico García Lorca de que não pude falar ao desaparecido. Pena minha. Livro, como todos, de labiríntica vida, mercê da edição crítica de María Clementa Millán. Para quê? Oh, os senhores sabem! Lorca evoca os amantes assassinados por uma perdiz. Se ele andasse por aqui e não fosse, também ele, matéria que corre, nuvem e sombra, azeitona e nome, número e ano, o quê, então.
Esta tarde, vou ao hospital velho de visita a um amigo acamado. Sei, por leitura, que entre a multidão de visitas se encontrará um casal de vadios. São os amantes segundo Lorca? Não, mas dá o mesmo: quase nada. Antes de embarcar na pinha amarela, passeio pela cidade bivalve. Só se aprende o que se reconhece. Reconheço isto: a chuva nas pedras, as putas do largo do restaurante chinês que se abrigam sob o toldo do quiosque de cerâmicas e porcelanas, os velhos sportinguistas que pedem tabaco a rapazes, os canalizadores queimando no cigarro o último quarto da hora de almoço. Reconheço a cidade. Gostaria de ser acompanhado nesta volta por um dos meus desaparecidos. O Energúmeno Evangelista seria o mais apropriado. Vou falar dele.
Era uma vez o Energúmeno Evangelista. Era um rapaz grande. Era alto, largo, grande: uma árvore. Tinha um olhar distraído pelo prazer. Mal ouvia o que lhe diziam, parecia. Na realidade, ouvia tudo. Ruminava à noite, nalgum quarto das tristes pensões que habitou, o que tinha ouvido ao mundo. O bigode sinalizava a boca carnuda de comedor de mulheres. Tinha o azar de não ser alcoólico. De modo que, para suportar a vida, ia ao cinema ou lia as aventuras de Jonah Hex, o desperado cínico de coração de touro de ouro. Tinha muita força física, que aplicava na remoção das más recordações. Comi com ele numa churrasqueira popular onde o preço era tão baixo, que tínhamos de nos baixar para receber o troco. Situei nessa churrasqueira uma canção apócrifa de Art Garfunkel num livro vindo a lume na cidade de Pombal, dia 31 de Outubro de 2003, talvez já vos tenha falado disso. Fui com ele ao cinema, paguei-lhe laranjadas e clássicos de bolso, que ele bebia e não lia. Empilhava títulos de cultura geral: Assubarnipal, Bergman, Cairo, Dolicocefalia, El Alamein, Fangio, Garbo, Hulk, Iggy Pop, Jesus, Lassie, México, Neanderthal, Oman, Purple, Quasar, Rin Tin Tin, Sartre, Texas Jack, USA, Vercingétorix, Xerox, Zakarella. Quando o vi pela última vez? Cada vez que o vi, foi pela última vez. Como acontece a toda a gente com toda a gente. Não é preciso um livro para saber isto.
É, é. Um livro é o que é preciso para se reconhecer o já sabido.
A toda a volta do hospital velho, o mar vertical dos pinheiros. Os doentes que podem passear no jardim de versalhes pobre vêm beber com os olhos o sal do ar verde. Faz-lhes bem, mas sobe-lhes a melancolia arterial de prisioneiros da alma. Não vi o casal de amantes vagabundos. Tinham desaparecido.
Gostaria de, em vez do costume, colher da literatura uma lição de verão, um diamante de luz negra, alguma coisa. Falo de quê a quem? Falo da quieta demora da cabeça tomada pelas frases feitas. Um perfil de mulher ilumina um vão de escadas. Uma álea de jardim botânico onde uma mulher nova se pertence. Carne entre flores, seivas vivas. Imagem para desaparecer comigo, quando a carne se romper, lama, alma. Desaparecem as vivas imagens, passadas raparigas, acabados dias, acabados janeiros, outras sombras me acometem no escuro da estante de garrafas.
Bebeu o que tinha a beber, decidiu não comer o bolo de carne de outro dia, passeou os olhos pelo jornal. Falaram com ele, eram os da fábrica. O futebol e a pouca saúde do filho foram os temas que desenvolveu.
Ouviu queixas laborais, palpites do loto e futebol.
Foi trabalhar entre os outros. Entrou na fábrica às oito, saiu ao meio-dia, entrou às treze, saiu às dezassete.
Entrou no café às dezassete e dez, ficou em pé ao balcão e não olhou o espelho.
Conversou e sorriu até às vinte e um quarto, foi jantar a casa. Ajudou a dar banho ao filho, a vesti-lo. Disse que precisava de uma camisa lavada. Despiu a suja e lavou-se de pé, sempre sem olhar o espelho. Saiu fresco para a noite.
Este homem desapareceu, vou falar dele.
Conheço-o desde sempre. Talvez mais agora, agora que desapareceu. Conheço outras pessoas, também me acontece. Tenho falado e escrito em torno delas, babujando-lhes de seda a cabeça, as orelhas. As pessoas são emanações. Têm uma estrela dentro. A luz sai delas e mistura-se com as nossas sombras. Nasce uma cor nova: o conhecimento. Também me acontece saber que a escrita me faz misturar tudo: pessoas, jardins botânicos, orlas de praia, normandias e tachos de esmalte, fogo e pó, terra e memória. Isso acontece-me muito, embora eu não tenha desaparecido. A pureza é uma arte híbrida.
Nesta situação, reconheço que falar desse homem pontual e desaparecido me vai fazer invocar os espíritos de outros, quando me perguntam se quero o costume. “O costume”, respondo.
Digo: “O costume”. Digo isto sentado ao balcão, no mesmo banco da última manhã dele, aceito o café e o copinho de conhaque nacional. Maio segue quente e abafado, alta pradaria de trovoadas. Chove água quente. Como as árvores dão frutos, a vida dá dias. A infância é um dia único, um dia parado, um dia surpreendido pelo flash perpétuo da fotografia.
Ele desapareceu, mas eu conservo-o na armadilha da infância. Éramos dois rapazes da mesma rua. Os anos mataram-nos como crianças, obrigaram-nos a uma adolescência atormentada pela sexualidade da música slow. Quase sem ler nem escrever, estávamos adultos. Ele casou-se, fez um filho que nasceu doente, o pai arranjou-lhe para electricista na mesma fábrica. Eu fui para a cidade estudar literatura, mas às vezes encontrávamo-nos no café. Eu perguntava-lhe do filho, ele, do que eu lia.
Como sempre acontece com os desaparecidos, o último dia em foi visto é claro como um horário. Onde esteve, o que disse, o que parecia. É como se eu ouvisse falar de um santo ou de um afogado.
Vivi uma manhã boa. Ouvi Paredes, li Quiñones, adormeci por meia hora, tomei um banho à temperatura de uma canja das antigas. Almocei presunto e papas de chocolate. Ao café e conhaque, a notícia de ter desaparecido chegou-me como um bocado de madeira de naufrágio chega à praia. Não sei quanto tempo vou falar dos espíritos, ele entre eles, como se estivesse a ir para a fábrica ou a vir dela, um entre outros, a cara triste e bonita de homem-pai.
O conhaque barato sobe as paredes de dentro da minha cara. É um calor bom para o corpo manter na tarde de chuva. Começo a viver de cor, como se haja alguma coisa, ou alguém, que me esteja lendo. Os espíritos dos ausentes vão voltar à minha cabeça, de onde descerão para a mão direita, que há-de desampará-los num maço de papéis. O desaparecido já pode aparecer. Escrevo que reaparece.
Reaparece vestido com as roupas do meu primo, o que morreu em menino. Deitado na morte, o menino-primo vestia camisa vermelha sob um casaco preto que o não aquecia. É possível que a camisa do homem-pai seja a mesma, os espíritos usam ardis. Lembrem-se que ele pediu uma camisa lavada. Estou a viver isto.
Importa menos e menos. Ele desapareceu, os dias desaparecem. É tudo um fumo. Vem outra manhã. Estou de férias. Tomo o costume a uma mesa de janela. A chuva persiste. Leio um volume inglês. A rapariga ama um mas está noiva de outro. Isto também acontece cá fora. Fecho o livro. O meu primo está ao balcão. Roda a cabeça. Vejo a camisa vermelha. Fecho os olhos. Abro os olhos. Não há primo. Pago e saio. Não espero pelo autocarro, vou andando. Desço numa rua estranha. Os prédios têm persianas verdes. Dentro dos prédios, advogados ditam cartas. No termo da rua, há uma igreja fechada com Cristo fechado lá dentro. Ando muito.
Camisa vermelha. Tive um tio. Foi-se embora muito antes de eu nascer. Nas famílias sem Deus, dizem às crianças que os mortos se foram embora, não lhes mentem com o céu, mentem-lhes com viagens. Dá o mesmo. O tio ainda é um nome lá em casa. Falam do cabelo dele, entre o castanho e o vermelho, da graça melancólica que trazia dependurada da alma como um fio de ouro baço. Esse tio contou ao irmão, que depois foi meu pai, ter visto o Diabo a dançar no cimo das espigas de milho. Era vermelho, o Diabo, como uma camisa de desaparecidos.
Os anos tornam-se números. Desapareceu aquele electricista da fábrica de porcelanas, o do filho doente. O meu corpo de rapaz: também ele desapareceu. No outro dia, um vento tomou-me a esquerda cara. Na cabeça, apareceu-me escrito: “Perfil de jogador do Tottenham, década de 70”. Arte de pancadas, viver.
Qualquer dia, voltam as férias. O verão também volta, fingindo-se o mesmo daqueles anos em que éramos filhos apenas, eu e o desaparecido. Com os anos (os números), o verão perde a enormidade amarela de que era feito. Torna-se um mero par de meses altos. Nada de especial. Gosto da chuva, da preguiçosa tristeza dos dias nublados, mas o verão abre as águas do corpo. No verão, é o meu corpo que chove. A noite chega como um livro de amantes, corteses fantasmas. A lua é morna, o céu deixa ver todos os cantos do nada, a terra dilatada abre-se em suspiros foscos, o cheiro da água do corpo toma sentidos na História, o olhar açucena-se-me, respiro a exaustão dos cardos, do panasco, dos espargos, do rasto de ouriços. Este não vai ser o verão em que ele volta. Nunca mais volta, vai haver outono, cama do inverno, vai estar o verão de outro ano, outro número, quem há-de contar tantos números, ele não. Conto eu.
Para lá e para cá, os autocarros municipais levam e trazem as hordas embrutecidas pelos baixos salários. O caixeiro da Sapataria Luxo, a rapariga do dentista Cláudio, o louco reformado aos vinte anos, a viúva carunchada de osteoporose, os desaparecidos íntimos: todos metidos na pinha amarela da Câmara. As respirações tapam a visão das janelas. Glauca, a carreira pára nos sítios combinados. Exclamações abafadas, calos pisados, trocos difíceis, aroma de gente fechada. O suor alastra como sangue pela roupa. As camisas ficam vermelhas. As pessoas saem, as pessoas entram: aparecem e desaparecem, como não escrever isso?
Escrevo isso. A finura do ar frio cristaliza o nariz, o sangue brilha no interior do corpo, o oxigénio abre uma gaveta no meu cérebro, essa gaveta em que vive, ubíqua, perpétua, uma tal gente do touro de ouro. Ali estão. Para que adultos cresceram as então crianças? Que juncos se tornaram? Não estou na história de Sophie, figura de fotografia esmaecida, aquele rosto-altar de beijo de mortos quando vivos, o sabor a nuca na boca. Oh, mas de mortos sem cheiro e sem dor! Antes de mortos limpos, de polida pedra cada osso, limpa terra toda a carne, só depois epigrafados com sensatez e ortografia por um cinzelador que bebe vinho branco pela manhã no café onde o desaparecido.
No café do desaparecido, retenho um pouco mais esse livro sobre que falámos. Ele gostava de saber o que leva uma pessoa a embalsamar os seus vivos na literatura, eu tentava pensar enquanto lhe respondia que as pessoas são uma coisa e as personagens são outra, e ele porquê, e eu não sabia dizer. Ainda não sei. Disse-lhe que a tua vida seria outra se fosse deposta num papel, como acontece às flores quando são fechadas dentro das igrejas. Ele dizia que era um electricista fabril, mais nada, eu dizia-lhe que sim, que tudo é mais nada, que é disso que os livros falam, então por que falam, queria ele saber, e eu não sabia. Claro que lhe falei de Forster, de James, de Osório, de McLean e de Quiñones. Ele ouvia com muita atenção. Depois falávamos de futebol e dava o mesmo, os jogadores eram personagens parecidas com anos: números nas costas. Éramos do mesmo clube, uma cor que perde mas tão bonita, cor de camisa de desaparecido, de diabo bailador de cimo de espigas. Partilhávamos pão e carne frita para almofadar as infusas de vinho branco que nos subiam a voz até os olhos, esses berlindes com que jogamos à dor e à memória.
Agora desapareceu. Eu estou para fazer o mesmo, mas a vida bate-me com a correia de um relógio nas costas, de modo que vou ficando, andando fico. As noites mal dormidas naufragam-me na costa suja da manhã de autocarros. Trechos da gente do touro de ouro voltam-me na cama. Espermas colados a sangues, gerações e diabos vermelhos rodando cálices de milho nacional. A formosa inglesa encurrala o médico e exige-lhe o nome do mal que lhe mata o homem, o engenheiro bom. O que é feito?
Janelas siderais, cometas de banda desenhada traduzida em português do Brasil. Nomes que ficam vivos, porque de personagens: Séneca, Denis, Virginia Loobo (dois ós, sim), Fonseca, Oliveira, Federico, Machado.
Lembro-me de lhe dizer: “Há gente que pensa que a poesia que vale é a sentimental, fazem da poesia um pronto-a-despir de sentimentos de roupa velha, porra!” Era o vinho branco, claro, mas ele interessou-se:”Então qual é a que vale para ti?” Eu ri-me da seriedade dele. E disse-lhe: “Olha, prefiro o caga e come que não passas fome, vale mais que essa merda toda do coração e perlimpimpão…” Ele também se riu e perguntou-me se eu estava a falar a sério. Eu pus-me sério e disse-lhe que sim, que muito. E então apareceu-me na cabeça aquele verso de Afonso Duarte: “A vida não se passa, não se conta”. E então ele ficou muito sério e disse: “Compreendo.”
Depois, suponho que se juntou “aos vastos exércitos daqueles” de Forster. Mas, tantos anos-números antes disso, ele era comigo um menino do monte e da rua e gostava do Arsenal de Londres (não do Tottenham), ardia a TV a preto-e-branco do fascismo católico. Foi por essa época que desapareceu o meu primo-menino. Antes de desaparecer de todo, vestiram-lhe aquela camisa vermelha, como se sangrasse ainda na quietação da morte. Pássaro de cara de cera voltada para o tecto, eu e ele o vimos na tarde sem redenção do velório. O que desapareceu agora e o primo-menino são hoje linhas do novo livro.
Entretanto (entre tão pouco), a gente do touro de ouro organiza o seu húmus: carne a caminho da lama, osso rumo a pedras. As estrelas intestinas urdem fogachos na memória: preciso de não esquecer, preciso de não me esquecer.
Se andassem por aqui (todos eles), beberiam o ar do monte, o ar refrescado pela pele do céu anoitecido com brandy e brandura e pela passagem poderosa dos comboios. Ouviriam da minha boca o que vou aprendendo da edição crítica de Poeta en Nueva York, o livro de Federico García Lorca de que não pude falar ao desaparecido. Pena minha. Livro, como todos, de labiríntica vida, mercê da edição crítica de María Clementa Millán. Para quê? Oh, os senhores sabem! Lorca evoca os amantes assassinados por uma perdiz. Se ele andasse por aqui e não fosse, também ele, matéria que corre, nuvem e sombra, azeitona e nome, número e ano, o quê, então.
Esta tarde, vou ao hospital velho de visita a um amigo acamado. Sei, por leitura, que entre a multidão de visitas se encontrará um casal de vadios. São os amantes segundo Lorca? Não, mas dá o mesmo: quase nada. Antes de embarcar na pinha amarela, passeio pela cidade bivalve. Só se aprende o que se reconhece. Reconheço isto: a chuva nas pedras, as putas do largo do restaurante chinês que se abrigam sob o toldo do quiosque de cerâmicas e porcelanas, os velhos sportinguistas que pedem tabaco a rapazes, os canalizadores queimando no cigarro o último quarto da hora de almoço. Reconheço a cidade. Gostaria de ser acompanhado nesta volta por um dos meus desaparecidos. O Energúmeno Evangelista seria o mais apropriado. Vou falar dele.
Era uma vez o Energúmeno Evangelista. Era um rapaz grande. Era alto, largo, grande: uma árvore. Tinha um olhar distraído pelo prazer. Mal ouvia o que lhe diziam, parecia. Na realidade, ouvia tudo. Ruminava à noite, nalgum quarto das tristes pensões que habitou, o que tinha ouvido ao mundo. O bigode sinalizava a boca carnuda de comedor de mulheres. Tinha o azar de não ser alcoólico. De modo que, para suportar a vida, ia ao cinema ou lia as aventuras de Jonah Hex, o desperado cínico de coração de touro de ouro. Tinha muita força física, que aplicava na remoção das más recordações. Comi com ele numa churrasqueira popular onde o preço era tão baixo, que tínhamos de nos baixar para receber o troco. Situei nessa churrasqueira uma canção apócrifa de Art Garfunkel num livro vindo a lume na cidade de Pombal, dia 31 de Outubro de 2003, talvez já vos tenha falado disso. Fui com ele ao cinema, paguei-lhe laranjadas e clássicos de bolso, que ele bebia e não lia. Empilhava títulos de cultura geral: Assubarnipal, Bergman, Cairo, Dolicocefalia, El Alamein, Fangio, Garbo, Hulk, Iggy Pop, Jesus, Lassie, México, Neanderthal, Oman, Purple, Quasar, Rin Tin Tin, Sartre, Texas Jack, USA, Vercingétorix, Xerox, Zakarella. Quando o vi pela última vez? Cada vez que o vi, foi pela última vez. Como acontece a toda a gente com toda a gente. Não é preciso um livro para saber isto.
É, é. Um livro é o que é preciso para se reconhecer o já sabido.
A toda a volta do hospital velho, o mar vertical dos pinheiros. Os doentes que podem passear no jardim de versalhes pobre vêm beber com os olhos o sal do ar verde. Faz-lhes bem, mas sobe-lhes a melancolia arterial de prisioneiros da alma. Não vi o casal de amantes vagabundos. Tinham desaparecido.
Gostaria de, em vez do costume, colher da literatura uma lição de verão, um diamante de luz negra, alguma coisa. Falo de quê a quem? Falo da quieta demora da cabeça tomada pelas frases feitas. Um perfil de mulher ilumina um vão de escadas. Uma álea de jardim botânico onde uma mulher nova se pertence. Carne entre flores, seivas vivas. Imagem para desaparecer comigo, quando a carne se romper, lama, alma. Desaparecem as vivas imagens, passadas raparigas, acabados dias, acabados janeiros, outras sombras me acometem no escuro da estante de garrafas.
Coimbra e Louriçal, entre 11 e 25 de Maio de 1999
Refundição em Pombal no dia 28 de Maio de 2004
(Este texto faz parte de 'O Preço da Chuva', coisa a publicar em breve, espero)
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