Quando eu era menino e estava doente, a febre era como uma pessoa quente que se tivesse deitado comigo. Depois, deixei de ser esse, dormi com mulheres e soube que era outra vez a febre, mas agora redonda e branca e com um calor de outra natureza, embora também por causa do corpo, como tudo. Entre uma e outra coisa, ia ao monte e colhia espargos. O vento era ele próprio uma bandeira, uma presença que exaltava. Eu corria de espargos apertados na mão, e tudo isto é triste e bonito porque é o passado. Conheço estas coisas desde que sei que vou morrer – quase desde sempre. Os vizinhos do apartamento de cima, ouço-os na cama a gemerem de ira ou de amor, o som é igual. Durmo sem pijama, os mamilos são dedadas de sangue, o umbigo chupa o cotão dos cobertores, os pés estão exilados no pólo sul do corpo, lá onde o gelo se afia de unhas, lá onde os calos de vendedor pulsam uma dor melancólica.
E à tardinha somos os mesmos, a uma mesa de pastelaria redonda como o destino. Todos bem, sendo “bem” o ter um trabalho. Eu, vendedor. Tu, administrador. Ele, professor. Aquele, or, ores, ores. Todos com algo de sufixo de agente, como nas palavras cruzadas. O denominador comum é a condição de estar vivo. E assim vamos estando, sendo, adiando. Outros houve no grupo da tardinha. Uns morreram, outros mudaram de mulher, casa ou emprego, ou tudo isso, dá no mesmo. Preocupamo-nos uns com os outros, mas a saúde ainda não é o que há-de ser: o tema único. Porque, afinal, somos gente com quarenta anos. Certo que nos lembramos, cada um por si, de coisas ridículas do passado, coisas como os espargos, que, de tão mínimas, fundam o ser, muito mais do que o estar. Envelhecer não é quando a infância cresce? É, sim. Sim, é isso. Por isso, há tardinhas em que não apareço. A dor toma-me e eu não apareço. Fico com uma cara de cão batido pela chuva, só me apetece descascar árvores até que tudo fique em sangue: a árvore, a mão. Como é evidente, tenho de ter cuidado com isto.
Quando decidi aceitar (como quem, magnânimo, concede) a ideia de morrer um dia? Lá longe, digo. O espaço acumulado torna-se tempo, sendo “tempo” o peso da acumulação de lugares. O umbigo é uma matriz geodésica inversa: assinala o mais profundo, o vale uterino onde o astronauta fetal arranca para a corrida do espaço. E quando estou assim, não me digam nada. Até porque estou só, que é como está quem vive. E se me perguntar se sempre foi assim, respondo-me que nem sempre foi assim. E minto com a boca toda. Artigo acrílico incluído.
A dor sobe, feita fogacho gástrico. Isto sim, sempre foi assim. Dor da memória, pior de todas: branca, falsa, falsa porque não branca. Equilibrar isto, equilibrar isto. Preferível de outra maneira. Junto dos clientes fiéis de muitos anos, sorrir melhor, mais brandamente, de modo mais puro. Vendedor-pessoa, não vendedor-vendedor.
Ou não. Só viver a verdade do passado. Cada vez que nos lembramos, refazemos. Isso pode ser maravilhoso. Posso ser uma criança mais alta do que fui, ou terei sido. Ao mesmo tempo, não cortar de todo as cordas que te amarram ao presente: o ordenado a vencer, as contas a liquidar, as tardinhas da pastelaria, o nome completo, sua data de nascimento. E as coisas restantes.
Assim está bem. Vamos, então. Nos hipermercados é possível descobrir uns espargos grandes dentro de frascos de vidro. Os espargos, que vêm do estrangeiro, estão a dormir dentro do soro. Não são os meus espargos. Os meus espargos são mais miúdos. São silvestres. A primeira mão humana que conhecem é a que os mata. Agora estou no monte, o vento levanta-me alguns centímetros e põe-me um pouco mais à frente. Há caracóis no musgo. Procuram as partes frescas do monte. Babujam e balbuciam. Também eles adoram os espargos. Mas eu corro mais do que eles. Em adulto, comerei caracóis grandes em restaurantes ainda maiores. São um manjar de luxo. É preciso ultrapassar, pela cultura da aparência e pela aparência de cultura, o nojo do ranho. Mas ainda não é a altura. Agora, sou este que ultrapassa tudo: caracóis, vento, luz. Sento-me numa encosta de que se desfaz a pedra. É à sombra. Enterraram por aqui um cão chamado Dourado. Mas agora o cão ainda não morreu. Está lá para baixo, vivo, na rua, no quintal dos donos. Amanhã, que é quinta-feira, visito o dos plásticos e fecho a volta em beleza. Hoje, tenho de procurar o sono, como se o sono fosse um irmão bom que se tivesse escondido atrás do armário ou atrás da morte. Não, ainda não.
Quem anda ao sol, conhece a extensão da vida. Percebe que é menor que a extensão do tempo. Quem anda dentro de um comercial de dois lugares movido a gasóleo, representando marcas de artigos, exibindo catálogos, aparentando um favor especial por um desconto especialíssimo, conhece o sabor a nada e a renada na paragem para refresco num bar da estrada, nalguma estação de serviço. Mostruários fechados a aloquete exibem cassetes de música e vídeos pornográficos. Cartazes de pé de ferro exibem os gelados à venda neste local. Calendários com mulheres nuas e calhambeques publicitam a próxima oficina de bate-chapas. As putas da estrada vêm aqui ingerir café com leite e bolos de arroz. Todos andamos ao sol com a cabeça cheia de sombras. Devagar, devagarinho, o meu tempo lê-me. Mão mágica, desbravadora de íntimas hortas. O hortelão, que é um príncipe caído em desgraça por manigâncias do IRS, espera que o sol da manhã venha pintar a primeira água sobre os legumes. Tenho de ter todo o cuidado.
A extensão das minhas duas vidas afia unhas de mosca nas muitas janelas. Todo o cuidado é tão pouco, não é? Se isto não dá, tem aquilo de dar, é tudo. Viver, viver, estar vivo. Aguentar as marradas e dar marradas. No íntimo da casa, no entanto, usar a cabeça apenas para efeito de recriação do território da infância, lá onde os espargos pulsam aroma, lá onde as raparigas não são importantes e não cheiram e não chamam.
Quando a noite vem, com gestos de mãe universal, vejo-me a sair de casa, a decidir esquerda ou direita, a guiar o carro por asfaltos moles (fez calor). Uma destas noites, escolhi a direita, fui comer salada de batata a um estaminé de brilhos modernos. Comprei cigarros, deixei o carro ao pé do restaurante e pus-me a andar noite adentro. Vi outra vez as pessoas. Todas acondicionadas na sua noite particular. Cada uma urdindo o novelo do destino, de olhar distraído e puro, um olhar deitado às costas das coisas. Naveguei assim para não deixar que a dor me matasse. Ou me mordesse como uma cadela prenhe que pensa que já pariu. Andei muito tempo. Entrei num piano-bar. Casais gintonificados falavam com os braços todos no ar. Ninguém parecia ligar ao trabalho do pianista. Vi que a rapariga do balcão me não iria tratar bem nem mal, coisa que me encheu de uma doçura maravilhosa. Senti-me invisível. E visor, visor de tudo e de todos. Estive ali. Não era importante. Eu não era importante, as coisas não eram importantes. A noite era importante. Para já, porque era muito antiga. Depois, porque era tão recente como um bebé. Desta condição estranha, a noite retira a produção dos melhores frutos: a solidão, a desimportância da solidão, a desnecessidade de voltar. Os amigos da tardinha dissiparam-se, o meu trabalho desapareceu. No corpo, subsistia um pouco da fadiga do trabalho. Vender coisas com uma facturação limpinha, falar com sujeitos que engordam em cubículos a que chamam empresas, tudo isto pode ser e é. Mas há as outras janelas: as que abrem paisagens dominadas por castelos dentro dos quais há condes húngaros que sorvem sangue, as que mostram o olhar do pintor que dava às coisas um nome diferente do legal mas mais justo do que o legal, as que uso para aceder a recantos da infância, lá onde os caracóis não são comidos, nem as raparigas. É muito importante impedir que a tristeza seja veloz. A qualidade da tristeza está na lentidão. Lenta, pode ser saboreada como café em púcaro de folha, ao vento do monte, acesa a fogueira. Os lobos juntam-se para ver o homem triste beber café, o homem que abre as asas do nariz para o hausto do vento que traz a presença desordenada dos espargos. De modo que saí do piano-bar, regressei ao carro e regressei a casa. Era já terça-feira, tudo estava em ordem. Verifiquei o alarme do despertador, li o Jornal do Comércio e estendi o braço para apagar a luz. Mas há muitas noites que ela estava apagada.
A manhã é um país muito parecido com a infância. Pode ser modificada, como tudo o que se sabe ter a morte no papo. E, como a infância e o cinema, é uma ilusão feita de luz. O resultado é, a longo prazo, a noite. A médio, o torpor de jibóia do almoço, altura em que é preciso retornar à estrada e aos industriais que encomendam por catálogo.
Dar luta à dor: programa do dia. Há muitos dias que não vou à pastelaria. Compro nozes, pão e cem gramas de mortadela, uma lata de gasosa. Estaciono à sombra da igreja, finjo que não sofro o olhar dos aldeãos carbonizados pelo sol das três da tarde, desço as escadas públicas até ao parque de merendas. Há um fio de água entre pinheiros. Calor e música de insectos. Uma cobra de água flui (dois segundos de epifania) entre ervas: pobre rã. Filmo o estralejar insone da luz entre folhas: flechas de pó iluminado, ouro vivo que paga a despesa da sombra. Sinto-me muito bem. Lá do alto, um aldeão espreita-me. Desconfia do turista. Quem, a uma tarde de semana, e sozinho, pode vir merendar? Desperto-lhe uma curiosidade a que o rancor mole dos estúpidos deve dar alguma cor. Passado um bocado, são dois a espreitar. Gesticulam. Decido olhá-los sem disfarce. Recolhem-se. Não. Descem ambos a escadaria. Um fica perto da mãe d’água. O outro acerca-se-me. “Vossemecê é daqui perto?”, dispara. Engulo devagar o último bocado de pão. Chupo o dente furado. Digo-lhe: “O senhor conhece-me?” Diz que não com a cabeça. Só a cabeça mexe. Os olhos ficam. “Então, é porque sou de longe”, digo. Olha-me, desconfiado. O humor é estrangeiro em toda a parte. “Isto aqui já foi dum dono”, avisa. Digo-lhe: “Isto aqui pertence ao povo desde 1974, a Junta trata disto, basta haver quem aproveite, então não acha o senhor que é assim e assim deverá ser enquanto o fio de luz daquilo a que chamamos eternidade se não apagar no azeite do olvido? Para mais, e contando sempre com a mais que previsível má catadura dos energúmenos, como no caso a mim presente e por si constante, sujeitos à insolação da Outra Senhora, não me parece, ainda assim, dever-lhe o obséquio tendente à fundamentação de razão e ou finalidade da minha presença manjedoura neste recinto sobredito público. N’é?”, metralho. O homem vai-se embora. Faz sinal ao outro com a mão. Leva a conta dele. O cu mental e o físico vão atados pelo mesmo nó. Mas isto entristece-me: a invasão, a guerra, a presunção, o estrangeiro, o estrangeirismo e o estrangeirado. A pacóvia plenipotente provinciana pobreza psicológica. Guardo os despojos da merenda no saco de plástico, cuspo para a água, mijo para a água, vou lavar as mãos e a boca ao fio gelado que sai da mãe-de-pedra e regresso ao carro com um ar de filósofo arrependido de não ter emigrado para a Venezuela ou para o Alasca. Já em andamento, topo os dois sentados num banco do adro da igreja. Meto a cabeça de fora e vocifero: “Vão desenterrar a vossa mãe, que os bichos estão fartos de ir às putas!” Ganhei o dia.
Por falar em mãe, se eu quiser fundar de novo a vida que encheu o meu corpo dentro da barriga dela, terei de invocar os vários reinos, os reinos primevos. O reino animal que enche a infância de sabedoria, por exemplo. Estou a ver-me a ver os pássaros. Eram caçados à pedrada e a tiro. Não por mim. Alguns adultos comiam-nos fritos com cebola. Outros pássaros eram para prender. Via-se o caçador no campo, mais longe que um grito. Ele apontava a espingarda, que era como um braço negro. Víamos o fumo a sair, mas só muito depois se ouvia o despejo do tiro. Os caçadores voltavam ao entardecer. Calçavam botas de borracha. À cintura, enforcados em anilhas de ferro, vinham os pássaros sem vida. Pareciam bonecos mal acabados, sem a firmeza de pau dos bonecos reais. Havia mais bichos. Os grilos, em cujas tocas mijávamos para os obrigar a sair à pressa, aturdidos como mineiros. As casas dos grilos tinham uma entrada redonda, perfeitamente redonda, com porta e tudo. Deviam ter janelas subterrâneas, porque cá em cima só se topava a porta redonda. Havia os sapos gordos da vala. A vala era pútrida, nela cagavam todas as fábricas da zona. Havia os cães, que matavam os gatos. Por isso, quase não havia gatos. Associávamos os gatos a um outro reino animal: o das mulheres. As mulheres velhas, sobretudo. Mesmo ao pé do monte, havia uma casa alta. Viviam nela a mãe velha e as duas filhas sem maridos. Vendiam ovos e recebiam as reformas. Nós atirávamos fisgadas às galinhas para as ver fugir com aquele ar indignado das pessoas estúpidas. Estou a fundar a vida de novo. Sinto-me bem com isso. Tenho uma paz tremenda. Estou do lado grande, agora. Os meus sapatos são maiores do que os do meu pai. Os meus sovacos já têm cabelo. A pele da ponta da piça deixa-se puxar toda para trás. Fumo sem me esconder, sem mascar folhas de oliveira depois. O da fábrica de plásticos chamou-me para jantar em casa dele. É uma vivenda com piscina emoldurada de relva. Tem bancos de recostar de plástico. Há azulejos pintados, uma mangueira dorme na relva como uma anaconda. A mulher reconhece o meu nome. “É você que é solteiro, não é?”, sorri. Tem a língua bifurcada. “Sou eu”, digo. Ela oferece vermute, pego no copo e brindo: “Mas a senhora, não.” Ela aguenta: “Às vezes sou, tudo calha.” Achamos ambos piada à conversa de filme maduro, rimos os dois. O anfitrião vem, rosna: “Ainda bem que se estão a divertir”, pega na mulher por um braço e leva-a. Fico por ali a engolir vermutes e a olhar para o azul-juliglesias da piscina. Um fabricante vem ter comigo. Estende-me o cartão: “Passe pela minha fábrica um dia destes, vamos almoçar e conversamos.” Digo-lhe que sem falta, muito obrigado. A vida é fácil. Vendes uma coisa barata, tornas-te caro a toda a gente. Gostam do dinheiro por causa disto: a evidência da piscina, o vermute dado aos pobres. Só precisam de ter cuidado com a menopausa das esposas. Por um nada, até com um vendedorzeco, põem cornos a torto e a direito. A brisa encrespa a água da piscina. O mordomo chama-nos para dentro. É um jantar-volante. Tem pianista e flautista. São casados. Ela é anémica e loura, como convém a todas as flautistas. Ele é marreco e infeliz como a música, poderia trabalhar nos saloons do Mundo de Aventuras. A sopa chama-se “Aveludado de Espinafres”. Comemora-se, com um brinde inicial de champanhe, a licenciatura em Medicina do filho mais velho da casa. Há tornedós, medalhões, escalopes, filetes, bavaroises, cordons bleus, batatas assadas e espargos. Não são os meus. Venho à portada espreitar o jardim: um passarito bebe água interminavelmente. O vento vem e toca-lhe o corpo. O passarito torna-se pedra. A dor.
Tudo se mistura muito rapidamente. Todo o cuidado é pouco. Não posso viver no caso de os planos se misturarem de mais. Os tempos têm de ser mentalmente apartados. Os lugares também suscitam muito perigo. No mesmo lugar, posso viver vários tempos. E posso morrer por causa disso. A rua aonde me dirijo, por exemplo. Há uma mercearia-café na esquina. Estou lá há agora quinze anos. Conheço a rapariga do andar de cima. Ela desce, compra pão, leite e margarina. Conhece-me. Depois, é uma tarde de chuva. Ela está à janela. Eu subo. Fazemos como os coelhos. É o dia da semana em que a senhoria dos quartos de estudantes se ausenta. Agora, faz um sol com mais quinze anos. A mercearia-café é uma pequena agência bancária. Onde está o frigorífico, está o cofre do multibanco. Não há rapariga. Há raparigas estudantes, suponho. Dormem no mesmos quartos, agora outros. Não tenho lá lugar. Não produzo ausência. O sol é uma surdez do ar, barra vidro pelo pão do calor, as pessoas desfalecem dentro dos automóveis parados na fila. É o mesmo lugar? Como pode? Mas é um único tempo, uma dimensão matadora que deixa recordar. Não há pássaros à vista. O mar respira longe, o mar de veleiros ricos e afogados pobres. No campo, um pastor escolhe uma sombra larga. É jovem. Espreita-o uma mulher. A mulher veio lavar roupa de cama no tanque da quinta. Os braços dela estão ainda frescos de sabão e água de pedra. Outros cheiros acordam no sul da mulher. Ouviu os passos descuidados do pastor. Tem o dobro da idade dele. Veio espreitá-lo. O rapaz tem pernas muito brancas e muito sólidas. A piça está meio túmida, perlada por uma lágrima de soro. O rapaz segura-a como se ela fosse uma atitude. A cegarrega canta. A açucena é de uma doçura enlouquecedora. O rapaz arranca uma folha de figueira, árvore láctea também. Mira-se com apreensão. A piça não desce. Pastor, frauta, fruta, figo, leite. A mulher não diz nada. Vê-o tocar-se, expandir-se, ficar triste. O pastor abandona a cena, assobia já longe às ovelhas. A mulher volta ao tanque, põe à cabeça, sobre uma rodilha de pano, a bacia de plástico azul. Os lençóis lavados perfumam o ar. A mulher desaparece, já meio esquecida.
O humor da dor contagia todo o corpo, corpo-garrafa que deito ao mar de sargaços (os outros, as outras coisas) sem manuscrito dentro, para quê. A luz da tarde está a arder muito bem. Sentado sobre mármore, de traseiro fresco, contemplo árvores altas que fremem como pulmões expostos. O ar fá-las cantar o tema eterno da água nas pedras. Gosto disto. Arejo a boca, abrindo-a como um sapo canoro. Descubro que tenho estado a ser observado por alguém. É uma menina. Está à janela de um sexto andar. O prédio, de onde o vejo, está meio oculto pelas grandes árvores cantoras. A menina abre uma estrela no vidro da janela: a mão esquerda. Digo-lhe a minha alegria com uma onda do braço. Mantém a estrela, o rosto concede um sorriso. Aparece uma cabeça de mulher na pintura. A mãe fala. A menina desaparece. Resta a vidraça, sobre que subsiste, impressos a vapor, o rosto da menina, a mão que era estrela, a presença do que perco quando me levanto e vou embora.
E digo-me muitas vezes que é preciso acordar cada manhã como quem renasce, mas o corpo não vai na conversa. O hálito traz consigo a véspera, as bolsas sob os olhos estão ainda cheias das coisas vistas nos ontens de muitos anos. De modo que renascer se me torna cada vez mais difícil. E então eu tento outra vez e outra e outra, como se escrevesse. Gostaria de iludir essa voz que cá dentro me diz não valer a pena repetir até à exaustão uma mentira cuja repetição lhe não outorga foros de verdade. Disfarçar, então, com a acção, vamos:
Ela aparece, vestida de azul, as glândulas ensacadas dentro da pele torrada pelo estio mais solar dos últimos anos e um olhar de cãozito sem dono. Eu estou na pastelaria do nosso costume, não dela, nunca a vi por estas bandas. Ela fuma uns cigarros longos e consecutivos como nos filmes, não olha para ninguém, nem sequer para a pessoa de calças pretas e camisa branca que lhe traz a água mineral sem gás. A acção propriamente dita começa com a chegada do homem. Deve ser o dela. Caso contrário, como justificar o cansaço fingido dele, todo músculos e fato italiano, encomendando com um estalar de dedos o balão de whisky? Não a beija. Ela, agora sim, olha. Mira-o fixamente, implorando uma atenção que ele dá negando. Lágrimas nos olhos dela, rastilhos de cristal. Ouço-o que murmura: “Se te pões aqui a dar espectáculo, levas aqui mesmo”. Ela levanta-se, mas a mala de mão não está fechada, de modo que se lhe derramam pelo chão as miudezas de senhorita: lápis de olho, cor de boca, escova, espelhinho matador, cartão de multibanco, óculos escuros. Ele levanta-se, saca uma nota de mil de um rolo que tirou do bolso das calças, murmura “Que espectáculo” e sai. Ela junta as coisas à pressa e sai a correr atrás dele. Ele já está dentro do carro, ela bate no vidro do lugar do morto, ele arranca, ela fica ali, outra vez sem olhar nada nem para ninguém.
Muitas vezes, com o ego a tiracolo como uma cartucheira, derivei no ar da mentira açucarada. Bebia até cair na ilusão de nunca me embebedar, de isso ser uma interpretação simpática mas errada dos outros, que também bebiam, e muito. Encontrava-me à noite, esperando por mim na casa anoitecida. Lá estava eu, o que tinha a casa e mantinha as despesas num alinhamento precário mas pagante. E cá estou, por assim dizer na mesma, isto é, vivo, mas mentindo-me menos, permitindo menos que a ilusão, essa gata, faça de mim um novelo. Por pura teimosia, sigo vivo. Nas costas de um mediterrâneo juncado de papéis, ordeno uma escrita que já não é navegação, nem mar, nem balsa de náufrago. Apenas isso – escrita. Quero dizer que os anos me vão dando uns cadernos de argolas com o nome-género de “Boca e Dentes”, mais um romance chamado “O Preço da Chuva”, mais uma coisa híbrida chamada “Noite de Homens-Cantores”, mais uma pequena colecção de relatos que leva o título do primeiro: “Gente do Touro de Ouro”. Em ardência, uma mistura hagiográfica, “São Jim”, com os ícones Sãozinha da Abrigada e Jim Morrison, “O Verão do Camionista Holandês” e um livro de “Espargos”. Em organização, um volume de crónicas, “Ouro e Sal/ Riscos de Inter-Invenção”. E isto vai sendo assim. Parei agora para dizer isto, como se fosse tarde. Posso morrer de uma apendicite aguda ou de um desastre de viação, e depois não disse nada. E isso nem seria assim tão mau. Mau mesmo haveria de ser não conseguir compulsar os meus movimentos profundos, esses mapas conscientes que é preciso (mas não sei por que razão é preciso) fixar com literatura, à falta de melhor laca.
Texto: Verão de 2000
Foto: Pombal, Setembro de 2004
1 comentário:
Uma pessoa é assim apanhada à sorrelfa e começa a ler convencida que são só uns parágrafos e depois está presa e depois não tem salvação. Fica queda e muda a pensar como é estranha a Vida.
Enviar um comentário