1. A Refeição
A nova mulher fez-lhe sopa, torrou pão, derreteu-lhe queijo e o coração. Era atraída pelas mãos caídas dele, mãos que pareciam não poder segurar o que quer que fosse, mãos de fim de linha. A mãe inchou nela, beijou-lhe o cabelo, enxugou-lhe a chuva interior e adormeceu no peito dele uma rola alimentada, tépida de sopa.
Pombal, 27 de Janeiro de 2005
2. O Projector
Voltei a ver a rapariga de casaco de cabedal negro. Fiel à água mineral, lê o jornal com uma concentração de esfinge. Sentada, dá para ver que é alta como uma personagem da Ilha de Páscoa, lá no longe das enciclopédias. É bonita e nédia. É provável que seja a alegria e a inquietação de alguém. Tem os óculos escuros na cabeça, o cabelo é castanho e escuro, produz em seu torno uma ilha de sossego que fica bem na minha descrita. Um dos projectores do tecto nimba-a de ouro, o que melhora a minha tarde, um golpe de asa dourada no céu cinza. Tem um bom rosto. Boca frutada, nariz completo, bochechas de meias maçãs arrumadas no lugar certo da caixa. Pode estar desempregada ou não precisar de trabalho. Não é casada nem mãe. São de boas unhas os dedos das mãos. Botas firmes, de cabedal negro também, protegem-lhe os pés dos vidros que calçam o mundo e a vida. A empregada do bar sorri conversas curtas com ela. Entendem-se bem. É o poder da rotina, a habituação do coração a lugares de comércio. Nos seus braços abertos, o jornal parece uma imensa borboleta desflorada.
Pombal, 27 de Janeiro de 2005
3. A Bomba
Domingo à tarde, a chuva não compareceu, sim o sol em lugar dela, nos lugares dela. Molhados de amarelo, certos trechos do passeio jubilam a pedra ordenada pelos calceteiros, esses xadrezistas que jogam de cócoras a interminável simultânea contra o resto do mundo. Visitei brevemente uma padaria-pastelaria, a cuja montra troquei os olhos pelas anunciações plásticas dos doces. Tomei café e saí, dois gestos que resumem a minha vida. Esperava que o telefone tocasse, mais tarde que mais cedo. Fazia por que a tarde desistisse de ser eterna, o que ela diariamente consegue com irrecusável galanteria. Um mau dente fazia-me descer o pensamento à boca, não tanto, como prefiro, à língua. Dentro de um volume vermelho, o trabalho de amanhã espera. É um bom domingo para compreender que já não demorarei muito nesta cidadela sem mar, riscada apenas por um ribeiro violado de suiniculturas e empreendimentos corruptos. Segue-se, como sempre, a incerteza. Compete-me, no entanto, não desistir de anotar a paragem destas paragens, o sufoco da interioridade auto-complacente, o areal psicológico onde o camelo bebedor arrasta suas quinzenas de abstinência. Poucos carros, nenhuns transeuntes: e nenhuma bomba caiu, que eu saiba.
Pombal, 30 de Janeiro de 2005
4. O Nariz
O pintor conta-me ter conhecido uma velha, hoje morta, que, sozinha, sentia crianças nas saias e por toda a casa. Nem malévolas nem benévolas. Um rancho de crianças fátuas, não visíveis mas sensíveis, pela casa toda. A velha passava roupa para fora. O pintor (era criança ainda, não ainda pintor) arredou duas resmas de lençóis passados. "Era um rodilhão de cabelos. Cheiravam a cinzento. Era a cinzento que cheiravam." O pintor era a única criança verdadeira na casa. Viu os cabelos estranhos entre os lençóis. Cheiravam a cinzento. A criança tornou-se homem-pintor pelo nariz.
Pombal, 30 de Janeiro de 2005
5. As Plantas
A mulher nova cria plantas na varanda. As plantas nascem-lhe da água pelas mãos. O homem antigo observa a sua mulher nova. A vida do homem está nas mãos da mulher nova como as plantas estão.
Pombal, 31 de Janeiro de 2005
6. O Combate
O homem vê um combate transmitido pela televisão. O lutador negro e o lutador branco usam os pés e as mãos. O chão é azul e flexível, com letras vermelhas pintadas numa língua bárbara. O árbitro veste camisa branca com laço preto e calças pretas, como antigamente os criados de mesa. A luta parece equilibrada. Golpes duros recebem troco. O espectador não percebe as regras nem a pontuação, desconhece para que lado pende a vitória, terá de esperar pelo fim para ver que braço, branco ou negro, levantará o árbitro-criado-de-mesa. As mãos calçam luvas de boxe, os pés estão envoltos em meias elásticas. O lutador branco é bielorrusso, o lutador negro é holandês. O chão tem algumas estrelas brancas: aqui, azul e estrelas são no chão.
Sou o homem que vê o combate, encostado às próprias cordas por dentro.
Pombal, 31 de Janeiro de 2005
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