08/07/2005

Vate 97

Estive vivo em Cabo Verde em Julho de 1997.
Aprendi a viver sem chuva, essas três semanas. Falarei agora de algumas visões enxutas desses 21 dias e dessas 21 noites.
Vi gente amadurecida pela resignação solar que me dizem ser a condição das ilhas.
Vi um posto de gasolina aceso na noite cor-de-camurça.
Numa taberna da Praia, uma parede dizia Académica, Benfica, Sporting, Porto. Me bibi grogue. Muito e morno. “A bo budibi bibi agu”, disseram-me. “Catem problema”, respondi. Aviaram-me, ofereci uma rodada, fui servido de outra. E às dez e meia da manhã o mundo tornou-se bom outra vez.
Meninos de bicicleta faiscavam de ébano ao sol inclemente. O pó ensurdecia-me a boca. Havia um bordado verde: o mar. A luz tinha uma qualidade material diferente da da minha terra: era feita de outro tempo.
Um dia, convidaram-me para um baptizado. A cachupa foi em Santa Catarina. Havia um bolo azul e uma garrafa de Vat 69 que me recuperou Ruy Belo sem pré-aviso. A festa tinha uma mulher lindíssima: tinha trocado os olhos por duas pedras verdes. Um rancho de homens estava sentado à sombra da única árvore. Falaram comigo como se sempre tivesse sido assim: homens à sombra de uma árvore, falando sem levantar a voz.
Outro dia, levaram-me ao Tarrafal. Entrei em todas as celas. A garganta tornou-se-me um nó cego. Refrigerei-me na praia da maldade da História, onde conheci um francês de extrema-direita que consentia em partilhar a areia com os nativos. Perto, a sepultura de um padre branco que me contaram ter sido pai de oitenta e tal filhos naturais.
Uma noite, o filho do dono do hotel levou-me à discoteca. Uma multidão lenta dançava com as ancas mais lúbricas e mais lubrificadas do mundo. As mor(e) nas povoavam as estrelas. E o mundo fazia o milagre de ser um bom sítio outra vez.
Falei com gente cubana, portuguesa, argentina e cabo-verdiana. Não falei muito. O meu prazer já era então o que hoje é definitivamente: ouvir.
Não pude ir ao Mindelo. Nem ao Fogo, nem à Boa Vista. Regressei pelo que tem sido a minha vida: pelo Sal, sem metáfora.
E tenho saudade de ter estado vivo.


(Escrito para o sítio na net http://www.liberal-caboverde.com/ na manhã de 8 de Julho de 2005, em Tondela.)

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Canzoada Assaltante