Fiz uma viagem de comboio, não muito depois de 1967. De qualquer modo, depois de 1967.
Vestia roupa de alfaiate, profissão então ainda oficiada. Fato completo cor-de-musgo e sobretudo cinzento. Botas de menino: a única possibilidade que as botas têm de não ser militares. Era por causa de um casamento de prima. Fomos recebidos na estação pelo pai da noiva, um homem de voz igual à do meu pai. Igual, digo. Uma voz igual. Os mesmos ritmos, a mesma espessura, a mesma participação da saliva na humidade do dito: a mesma voz noutra boca.
A estação era enorme. Tudo é enorme para um menino, à excepção da esperança. A esperança é do mesmo tamanho que ele. Pronto, fomos recebidos na estação, entrámos com exiguidade num mini verde 8não sei se morris, se austin, a memória traz sempre defeito de marca). Levaram-nos.
Era a véspera do dia em que a prima ia vestir-se de laranjeira branca. Lembro-me do noivo. Era um rapaz polido e aromatizado como um sabonete. Ia transformar-se em genro por força da Igreja e do Amor.
Ficámos hospedados numa casa de caseiro de quinta, onde o tio habitava por suspeito favor de uma senhora rica, a tia só suspirava. A prima era única: como noiva e como folha. Achei-a linda.
Andei perto do palacete patrimonial. Pelas vidraças largas, vi o que a ausência prolongada faz aos móveis: torna-os ingleses. Era como se tudo fosse do meu tio, o que a meus olhos aumentou tio e quinta.
Nesse ano sem número (só comecei a numerá-los depois de saber que, de qualquer modo, os perderei), a vida parecia tudo menos um animal em vias de extinção: um tigre perpétuo, um coala dono de eucaliptais intermináveis. O fato era verde, o sobretudo era cinzento, o alfaiate era Rodrigues. A quinta anunciava Lisboa: toda a enormidade do mundo. Já então eu enfardava uma melancolia provincial, que com o tempo se volveu capital. A verdade é que ninguém era europeu na altura.
5 de Julho de 2004
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