Fui eu aquele que perdeu o Verão de 1967. Outros perderam outros. Eu perdi o de 1967. Os verões são para perder como jóias. E jóias eles são, enquanto fulguram como cristaleiras incendiadas, como tubas em fogo. É, portanto, escusado procurá-lo, ao de 1967. Mesmo neste livro, sobretudo neste livro.
A eternidade não vai ser: não é humana. Estar é animal e mineral. Só ser é humano. E isso perde-se: deixa de ser. Deixa também um lastro amargo, o de ter sido, o de ser tarde – perder. Resta o trabalho de ordenar as cinzas, soprar alguma brasa não de todo extinta, tratar a ferida da fogueira.
As pessoas tornam-se lentas. A razão é esta: preparam-se para a fotografia ou a pintura, onde demorarão, julgam. Julgam mal. A fotografia não tem pessoas, os retratos são tinta sobre madeira. A alma nunca esteve lá, nem Deus.
Quando aprendi a ler, alguns poucos anos depois de 1967, vi com nitidez que os canários engaiolados se tinham perdido de canários. Eram borrões amarelos que piavam entre arame, não mais o que se chama canários. Quando pude ver, isto é, ler mal, aceitei que o pintor, fixando fantasmas, configurava (desfigurava, mais bem dizendo) a sua própria ausência: o seu mesmo desaparecimento, do lado de cá, é contemporâneo do aparecimento dos fantasmas. Isabel d’Este, por Leonardo. Magritte, por Magritte. Marquês Sommi, por Lempicka: iguais fantasmas. A memória do cão não é o cão. A irmã fotografada é tão a brincar como a guitarra do menino.
Os olhos praticam uma força brutal sobre o mundo. Lembro-me de estar sentado a fazer andar pessoas, a congelar carros, a levitar árvores, a fechar janelas de prédios muito altos. Tudo com o olhar. A força era tão brutal, que nem precisava de olhar. Nem de luz precisava. Bastava o escuro, bastava desejar. E o escuro escurecia o escuro, como o desejo desejava o desejo.
A criança brutal repunha os objectos do mundo, duvidando da suficiência insensata dos nomes: o pato, o popó, a pipa, o pé. Era uma forma de felicidade. Ainda exerço essa tirania, mas limito-a ao papel quadriculado e ao bico negro do objecto que sangra aranhas – as letras velhas do ano em que morria Magritte, como se então escrevesse o Verão por mim, não ainda eu, que todo me dedicava ao trabalho de o perder, olhando o chão de fotografia.
26 de Junho de 2004
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