08/07/2005

Acabamento Rápido

Isto é um domingo. Os Outros almoçam.
Preferi morar meia hora sob as tílias da praça central, comendo um gelado enquanto lia a ourivesaria do uruguaio Eduardo Galeano ("Cada pessoa é uma cor que caminha.", escreve ele a páginas 154 da tradução brasileira de 'Bocas del Mundo').
Aí me visitou a ideia para uma história, a ver: palavras e frases em torno de uma senhora de companhia, pessoa/personagem que ganha (mas perde) a vida aturando os mandos e desmandos de senhoras cuja prosperidade e cujo Alzheimer as fizeram ficar órfãs de filhos vivos sem vida para elas. Não desenvolvi a história. Tenho-a num dos bolsos da minha cabeça de ganga.
Levei o gelado ao fim, encomendei café e tudo estava bem. Depois, levantei-me e vim para aqui.
Entre lá e aqui, reparei no facto de a capela de S. Sebastião estar de portas abertas. A curiosidade de visitar-lhe o dentro podia finalmente ser satisfeita. Mas era um velório.
Eu só queria ver o altar, respirar o frio perpétuo deste time-sharing de Deus, só queria ver e respirar.
Mas era o velório de uma senhora de 85 anos. Duas senhoras antigas, mas vivas, eram todo o velório. À entrada, no painel de notícias do templo, o prospecto funerário dava o nome e o parentesco da defunta senhora.
Não fui sentido pelas duas velórias, tendo-me daí sido possível uma retirada digna. Ainda pude sorrelfar a visão da urna aberta, onde a partida dormia acolchoada de cetim branco e de flores arranjadas profissionalmente. Decoro e lei. As duas vivas ciciavam, talvez para que a senhora não acordasse. Se se visse naqueles preparos, morreria decerto e de susto.
O tudo disto não durou um minuto, mas já me deu várias linhas. Agora, abrigado à sombra do bar, não já das tílias, uno as pontas: foi a senhora de companhia da minha história que morreu e está a ser velada.
História acabada.


Largo do Pintor Gata, Viseu, 3 de Julho de 2005

1 comentário:

Alexandra disse...

História redondinha. Morta e esticadinha.

Canzoada Assaltante