"Quiçá te consideres um oráculo, porta-voz dos mortos ou de algum deus."
Sylvia Plath
"Mas os mortos têm as suas ocupações, que nunca são as nossas."
Philippe Claudel
Roderic Ravensworth não pôde existir a sério por se tratar de um pseudónimo imaginado por William Ashenden. E por Ashenden ser, ele mesmo e também, uma personagem de "Cakes and Ale", livro de Somerset Maugham, autor que parece ter podido existir, de verdade, entre 1874 e 1965.
Nem sei por que me chega isto ao caderno. Uma possível razão é a de estar sentado na sala de espera do terminal de expressos de Lisboa, em Sete Rios, numa fria noite de Dezembro.
Ravensworth, isso é claro, já teria morrido entretanto, mesmo que lhe tivesse sido possível existir mais do que como assinatura pseudónima (riscada rapidamente para parecer verosímil) por um adolescente de ficção que não estimava o próprio nome, o nome sob que, aprendi, se ocultava na trama de "Cakes and Ale" o próprio Somerset Maugham.
Também é mais que certo que, nesta altura do meu campeonato particular, outras coisas me deveriam voar ao vento neuroquímico da cabeça. E também teria sido muito acertado, arrependo-me agora (sem que de nada adiante arrepender-me), ter trazido o gorro de lã para a mesma cabeça em cujo dentro Ravensworth, Ashenden e Maugham se fundem e confundem no cadinho de tédio do esperador de autocarros interurbanos.
"Existir de verdade", disse eu a propósito de Maugham, mas não sei se disse bem. Verdade mesmo é ele ter morrido faz este Dezembro 39 anos. E não será morrer a mais liminar maneira de passar-se a personagem? Maugham tem de morto menos um ano e picos que eu de vida. Eu, Roderic Ravensworth, por exemplo. Ou eu, William Ashenden. Somerset Maugham, aliás, também era William, até antes de ser Somerset e Maugham. Para complicar mais ainda, Ashenden (Maugham) confessa nem se importar de, em lugar de chamar-se Roderic Ravensworth, ser reconhecido por Ludovic Montgomery.
Ora, o Montgomery mais famoso é o general que derrotou o alemão Rommel nas areias esbraseadas de El Alamein. Rommel (também por R, como Ravensworth, mas não por A, como Ashenden ou Abrunheiro) existiu, mas foi forçado a deixar de existir. A História (essa ficção menos revista e mais aumentada cada vez que revisitada) diz que o general alemão ('A Raposa do Deserto', como era conhecido por mérito da argúcia estratégica por ele demonstrada no campo militar) foi obrigado a suicidar-se pela própria hierarquia nazi a que pertencia. "Raposa"? R também, como em Ravensworth e em Rommel. Alamein como Asheden e etc.. Willie como William, duas vezes W, mas o mesmo: um só. E um "só", como no som de Somerset.
(Faltam duas horas para o expresso Lisboa-Coimbra, o frio solidifica o ar do terminal, não sei aonde isto vai dar, talvez a Coimbra.)
De modo que nada: o mais sensato é aceitar que Ravensworth tenha existido a sério. Isso aceite, azar dele.
Lisboa, noite (fria, realmente) de 11 de Dezembro de 2004
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