12/10/2020

VinteVinte - conclusão da entrada 76 (VIII a XI)

 

VIII

 

No ano 1979, numa bela manhã de chuva, dois cavalheiros terminando de pequen’-almoçar em a pastelaria mais próxima do estuário, saindo ambos juntos até à praceta das estátuas-gémeas, aí se separando, o mais alto & mais velho descendo rumo aos grandes armazéns, o júnior baixote subindo ao bairro dos columbófilos. É o último ano vivente de um deles, o outro aguenta mais catorze anos.

Um deles forneceu manuscritos ao outro. São relatórios cruelmente codificados: chegadas, estadas & partidas de navegação litoral; elencos de teatros da capital & da segunda cidade do País; contactos-retransmissores do Ateneu Filatélico; abrigos-seguros no interior nordestino; sítios onde deveras se come bem & barato.

Só conheci um deles em pessoa. Só partes esparsas pude ler de tais manuscritos. Decifrei talvez oitenta páginas, não mais. Fui muito bem pago. Desde então, não tive mais encomendas desse género de trabalho, que, para meu azar, é o que prefiro.

Consumi três semanas em tal decifração. Foi numa quinta a leste daqui-hoje. Terminado o trabalho, deixaram-me ficar cinco dias para me restituir a regularidade do sono & da alimentação.

Nem 1979 é já nem jamais 1993 volta a ser. Deveria não ter pena de tal. Mas tenho.

 

IX

 

Só o suficiente – a divisa é de Maria da Visitação A.G. Olham-na hoje numa rua de Coimbra, não a vêem, nem suspeitam de essa velhinha ter sido uma das mais bem formadas servidoras da Repúblicas. Na altura, ela residia na Carlos Seixas. Mudaram-na depois para a Dias da Silva. Acabou na Afonso Duarte. Tem menos dois anos que noventa (nascida a 19 de Julho). Não pede nem dá. Nada lhe sobra, nada lhe falta. De poucas vidas pode, parecido sequer, ser tal dito.

 

X

 

Janela bastante, roupa no arame.

Trecho de rio entre esquinas semipróximas.

Lotaria anónima ceifando a preceito.

Viagem alternativa feita com proveito.

Não mais, nunca mais, aquiescência-zero.

Porta bastante.

 

XI

 

O dia encerrou-se sem mínimo sinal do esperado aguaceiro. Ao menos, o calor não sufocou esta casa. Dei-me horas de sono depois de três de teatro muito bem feito por ingleses de há 41 anos. Não foi um sono-em-branco. Sonhei – por assim dizer – transatlanticamente. Vi-me num casarão de pedra & madeira no continente americano. No amplo lar, queimei jornais infestados de mijo de rato. Alguém me surgiu ao grande portão da sala, incitando-me, em uma humildade imperiosa, a apagar a fogueira. Vi-me num átrio de universidade. Angustiava-me não ter comigo o meu bornal, a minha tinta, os meus lápis, este caderno mesmo. Rondava por ali o António Lopes Cação de Trouxemil, que me apercebi desconhecer ainda a má-nova do meu Irmão Rui. Levaram-me então a bordo de uma estranha barca sob que não havia água, só vegetação selvagem. Dali partia a máquina-voadora de regresso à Europa. Não era o futuro, não era algum século identificável – era uma espécie de presente sem relógio, bússola ou calendário. Não havia, claro, quaisquer cores ou sons. Moviam-se a cartolina os bonecos sonhados. Todavia, a omnisciência parecia ser para eles tão natural como na laranjeira a esfera de ouro maciço.

Despertei quando esmaecera já a tarde, já a noite se assenhoreara do pobre mundo exterior. Brinquei um pouco com o Menino. Fiz café, comi pão vesperal com mel novo, fumei com algum delícia mirando o que foram campos & o que foi luz.


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Canzoada Assaltante