VIII
No
ano 1979, numa bela manhã de chuva, dois cavalheiros terminando de pequen’-almoçar
em a pastelaria mais próxima do estuário, saindo ambos juntos até à praceta das
estátuas-gémeas, aí se separando, o mais alto & mais velho descendo rumo
aos grandes armazéns, o júnior baixote subindo ao bairro dos columbófilos. É o último
ano vivente de um deles, o outro aguenta mais catorze anos.
Um
deles forneceu manuscritos ao outro. São relatórios cruelmente codificados:
chegadas, estadas & partidas de navegação litoral; elencos de teatros da
capital & da segunda cidade do País; contactos-retransmissores do Ateneu
Filatélico; abrigos-seguros no interior nordestino; sítios onde deveras se come
bem & barato.
Só
conheci um deles em pessoa. Só partes esparsas pude ler de tais manuscritos. Decifrei
talvez oitenta páginas, não mais. Fui muito bem pago. Desde então, não tive
mais encomendas desse género de trabalho, que, para meu azar, é o que prefiro.
Consumi
três semanas em tal decifração. Foi numa quinta a leste daqui-hoje. Terminado o
trabalho, deixaram-me ficar cinco dias para me restituir a regularidade do sono
& da alimentação.
Nem
1979 é já nem jamais 1993 volta a ser. Deveria não ter pena de tal. Mas tenho.
IX
Só
o suficiente – a divisa é de Maria da Visitação
A.G. Olham-na hoje numa rua de Coimbra, não a vêem, nem suspeitam de essa
velhinha ter sido uma das mais bem formadas servidoras da Repúblicas. Na
altura, ela residia na Carlos Seixas. Mudaram-na depois para a Dias da Silva. Acabou
na Afonso Duarte. Tem menos dois anos que noventa (nascida a 19 de Julho). Não pede
nem dá. Nada lhe sobra, nada lhe falta. De poucas vidas pode, parecido sequer,
ser tal dito.
X
Janela
bastante, roupa no arame.
Trecho
de rio entre esquinas semipróximas.
Lotaria
anónima ceifando a preceito.
Viagem
alternativa feita com proveito.
Não
mais, nunca mais, aquiescência-zero.
Porta
bastante.
XI
O
dia encerrou-se sem mínimo sinal do esperado aguaceiro. Ao menos, o calor não sufocou
esta casa. Dei-me horas de sono depois de três de teatro muito bem feito por
ingleses de há 41 anos. Não foi um sono-em-branco. Sonhei – por assim dizer –
transatlanticamente. Vi-me num casarão de pedra & madeira no continente americano.
No amplo lar, queimei jornais infestados de mijo de rato. Alguém me surgiu ao
grande portão da sala, incitando-me, em uma humildade imperiosa, a apagar a
fogueira. Vi-me num átrio de universidade. Angustiava-me não ter comigo o meu
bornal, a minha tinta, os meus lápis, este caderno mesmo. Rondava por ali o António
Lopes Cação de Trouxemil, que me apercebi desconhecer ainda a má-nova do meu Irmão
Rui. Levaram-me então a bordo de uma estranha barca sob que não havia água, só vegetação
selvagem. Dali partia a máquina-voadora de regresso à Europa. Não era o futuro,
não era algum século identificável – era uma espécie de presente sem relógio,
bússola ou calendário. Não havia, claro, quaisquer cores ou sons. Moviam-se a
cartolina os bonecos sonhados. Todavia, a omnisciência parecia ser para eles tão
natural como na laranjeira a esfera de ouro maciço.
Despertei
quando esmaecera já a tarde, já a noite se assenhoreara do pobre mundo
exterior. Brinquei um pouco com o Menino. Fiz café, comi pão vesperal com mel
novo, fumei com algum delícia mirando o que foram campos & o que foi luz.
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