Die Linkshändige Frau – © Peter Handke
67.
BRINCADEIRA ABERTA
Coimbra,
quinta-feira, 28 de Maio de 2020
(I)
(Tenho aberto alguma coisa o Livro.
É relativa cifra, não-absoluta.
Escrever é dizer, não falando, a quem escuta
que se é & está, por modos, vivo.)
II
Toda a noite, o sono não veio, nada quis comigo, não o mereceu o (m)eu-corpo. Assisti portanto ao raiar da alva, ante o novo dia como ante um glaciar descomunal feito de magma fervente. Para que pelo lado errado me não tocasse a solidão, fiz-me companhia. Escrevi aquelas quatro linhas entreparentéticas supra. Circulei hexagonalmente: cozinha, quarto, despensa, quarto, casa-de-banho, cama. Acordei já a tarde, como uma alva fatigada & espúria, acampara na borda-d’além da marquise. Saio só amanhã à rua, já o estabeleci. Estou em posse dos papéis a tratar, sei aonde ir, são quatro sítios, depois dou uma volta pelo paraíso, volto para casa. Talvez, enfim – como em tudo que seja prospecção do porvir, nunca se sabe até (se) ter passado.
III
Outros elementos do Grande-Entretanto:
a) Revoada de bípedes assalta loja às claras da tardinha, caras descobertas, insultando & agredindo & vandalizando, caos premeditado, desordem amada – mas nada se pode dizer por já não haver delinquentes, nem assaltantes, nem criminosos, nem bandidos – agora só há jovens, coitadinhos.
b) Em bairro típico daquela anti-socialidade pasteurizada por certa Esquerda da moda, jovem mata rapariga porque-sim. Com pagamentos-por-conta & amnésias-futuras, talvez apanhe dois, três anos de cadeia. Mais? Seria contra a juventude. Ademais, só se fala dos “direitos” dos reclusos. Nada de “direito” quanto a vítimas, guardas-prisionais etc. O crime compensa – não pensa mas compensa.
c) Os gorilas que invadiram certo centro de futebol (agora chamam-se “academias”, já me esquecia) praticamente saem ilesos do julgamento. Muita pena-suspensa. São jovens, coitadinhos.
d) Isto revolta um santo. Isto desordena os anjos. O jornaleirismo, ao serviço do estardalhaço mirone & subvencionado por grupos-de-investimento obscuros como máfias, ajuda ao vácuo. Desinformação & deformação de mãos dadas. Áfricas, brasis & ucrânias não descarraçam o lombo a este canto do mundo pouco maior que quintalório subcontinental. Isto endurece-me & embota-me a atenção. Fujo mais para dentro. Século Dezassete Francês para continuar lendo. Depois não durmo, ou durmo tarde, ou não acordo de todo. Chapinho água ex-fresca no focinho, preparo as coisas da mais improvável coisa – essa chamada amanhã.
(IV)
(Aquela carta antiga esperava-me no bojo de uma edição da Livros do Brasil que adquiri em 1991. A carta será talvez dessa idade, não tem data. Veio do Norte da nação ter comigo uma conversa-de-mudos: muitos gestos, nenhuma sílaba audível. Não a releio. Causar-me-ia amargor decerto. Acidular-me-ia de mesquinhez anacrónica.
E anacrónica é o termo absolutamente exacto. Como vocábulo & como limite, finitude, acabamento. Que o futuro me dê outro achamento.)
V
Dois rostos de homens que vejo: poemáticos.
O encanecido parece menos gasto.
O de cabelo negro, nota-se que tem sofrido.
Tiveram comum mãe, diversos pai & pai.
Conversam no passeio ao crepúsculo pré-nocturno.
Falam pausadamente, não se interrompem.
Que conjecturam ou decidem, não sei.
Também não é agora que os vejo.
É em 1981, é na Rua da minha criação.
Poemáticos, dois, rostos – de mortos re(vi)vendo-se.
Um ao outro.
Sem mim – excepto para isto de (escre)vê-los.
VI
Errada & erraticamente por aí deambulamos tratando por nosso este mundo. Incorrecto possessivo – na verdade, dele somos nós, organismos efémero-transitário-transitórios.
Não alinho em cabalismos mediúnico-estapafúrdios. Portal-mágico, só o da literatura. Poe com uns pós de Baudelaire. Etc.
E todavia os anjos rondam os telhados como pardais nevados. Distingo-os sem ser em sonhos nem em vígil estado.
Certo fulano que conheço (e tão bem…), ou em hora menos boa conheci, tinha um milhão em barras de ouro & notas vivas oculto num vão da casa – à la Pablo Escobar e/ou Tony Soprano. O tal não é dado a literaturas. Barras de ouro dispensam angelismos.
E no entanto ainda o Sol a prumo torna 15-de-Agosto cada dia que o não seja pelo calendário. E todavia tanta barra de ouro por desvergonha escondida, tanta não dá para comprar isto:
VII
Tempo, brincadeira de crianças.
Brincadeira de crianças tão depressa passada,
que nem perpétua se sabe ou reconhece.
E todavia deveras perpétua:
brincadeira sempre, só muda de crianças.
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