25/10/2020

VinteVinte - 88 (pronto, está bem, vai tudo)


Wenceslau de Moraes & Camilo Pessanha
com duas outras pessoas



88.

 

SONHADORIA ENSACADA

 

Coimbra, sexta-feira, 26 de Junho de 2020 (I-II)

Coimbra, sãbado, 27 de Junho de 2020 (III)

 

 

I

 

Hoje é dia de referência a Claromonte Faianorte, empresário de música que privou com algumas das mais brilhantes luminárias do ramo. Anos decisivos, ocidentais, congregadores – foram os dele. Não pisava o palco nem a ribalta o banhava. Era outro o brilho dele: o trabalho das sombras, o bastidor do fulgor.

Depois como antes dele, levo-me a pensar em peregrinações, íntimas autoperegrinações como as de Camilo Pessanha & Wenceslau de Moraes – amaila em fulgurante velocidade de Cesário Verde & Arthur Rimbaud & Hart Crane. Isso ensina, pode ser retido, apreendido, aprendido, preso, detido, tudo.

Bem – mas e mais?

Respondo: por menos.

Catarino Ricardo foi ainda mais discreto, praticando a mudez como um príncipe sem tormenta. Publicou bem, pseudonimamente sempre, sempre com notável regularidade. Nunca se imiscuiu, nunca se deixou prostitu’ir-c’as-outras, isso é que não, nunca. Há quem lhe conheça os livros, a ele não. E tal é já m si suficiente encómio da figura.

Hoje é quase ontem já.

 

Hoje é quase ontem já.

Não cuidei que se fizera noite.

Cuidei da manhã, dela sim.

Procedi bem em xadrez calado.

À tarde, dormi hora & ½.

Farrapos de imagens enevoadas.

Solidão nenhuma – o Gato comigo.

João Filhandré ouvi em beleza.

É cantor daqueles únicos.

Cifrei dentro a dádiva dele.

Tão pouco custa a felicidade.

Reavaliei andamentos de Van G.

Dolorosa, viacruciática é a perfeição.

Paguei-lhe em florins transparentes.

 

Burros malévolos no televisor.

Zurram pouco, que os desligo.

Mundo aparatosamente chunga.

Paraíso da escumalha lixeir’antropóide.

Não encontrei aquele livro de Hart Crane.

Encontrei outros que não procurava.

Assim a nossa vida.

Digo nossa por ingénua ousadia.

Não há nossa, só a de cada um(a).

Em concerto, ainda a Beleza se ilude de todos.

Cá fund’adentro sabemos a verdade.

Essa verdade não é malévola.

Malévola é a burrice televisionante.

O coiso do Brasil, o scotch-brite de Washington.

 

II

 

Acontece ao pensamento ser sonhadoria.

Digo: a mente em cuecas coçando-se.

Visões nubladas por sentimentos nada cristalinos.

Sílabas como legos-de-logos, por assim dizer.

Acontece-me muito há muitos anos.

Não é fortuna & não é doença.

Devém tão-só do feitio-do-animal.

 

III

 

Saco com mercearias para conforto da finimanhã de Sábado, 27 de Junho de 1960, perdão, 2020. E o conforto é certo & seguro: pão novo, empadas de galinha, frango-do-campo já assado em modo pronto-a-comer, laranjadas pesadas de seiva, torta de chocolate com creme-de-ovo, agrião para salada, presunto lascado finissimamente. Ainda: pacote de café-negro, natas, morangos, manteiga, queijo-caprino, rebuçados-de-fruta. Comendo de pé na marquise, olhando as aves saciando-se. Tudo isto como programa & manifesto em pessoa-com-Gato-próximo.

 

E à hora em que a tarde ainda é cedo, o aprazível céu nublado, sem frio & sem caloraça, preside ao sossego da terra. Sim, é uma verdade hodierna, esta.


 

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Canzoada Assaltante