72.
DE PAQUETE A PARDAL
Coimbra,
terça-feira, 2 de Junho de 2020
(...)
II
Na
vastidão da tundra, os oito homens preparam-se para o Inverno, que é uma noite
só & una directamente ligada à nocturna vastidão sideral. O mecânico é
rigorosíssimo, não há ponta-solta que lhe resista. O médico é parrana, de boa
pachorra que ilude, à primeira, o muito saber profissional. O geólogo é duro
como o que estuda & silente como o que analisa. O informático vive em uma
antárctida só dele, a dele por acaso contemporânea da Antárctida exterior que
habitam. O paleontólogo adora whisky & poker & películas porno/8mm dos
anos 70/XX, que filtra da internet à razão de duas por semana. O piloto gosta
de jornais do século XIX, da internet também aproveita. O poeta faz de
cozinheiro – ou este escreve versos, entre uma & outra refeição. O
comandante provém de família meg’abastada – mas comanda por competência &
direito próprios.
Eu
cozinho, sim. Às nove da manhã, a sopa do dia está pronta. Lá fora, quase
trinta graus. Passa a van dos ciganos feirantes. Qual antárctida qual
porra. Mas sim,
Na
vastidão da tundra, os sete (…)
III
Vinte
e um anos depois da primeira (concluída na tarde de 29 de Abril de 1999,
quinta-feira, no Louriçal), concluo hoje a segunda leitura integral de Jornal
do Observador, do grande Vitorino Nemésio. Duas diferenças maiores existem
entre nós dois: ele era deveras grande escritor, uma, &
católico-praticante, outra. Sobre a primeira, nada a acrescentar: é franca
evidência; quanto à segunda, duas coisas simples: sou agnóstico por ter alguns
estudos que me elevam do primário-ateu; e não sou católico porque nunca
obedeceria a uma religião em cujo culto só um é que bebe vinho. Pronto.
(...)
V
Uma
pouca de gente de fim-de-dia vem a compras de última-hora aqui ao mini-super do
bairro. A nefanda globalização tornou-nos idênticos. Ou clones. As
mesmas coisas fazemos à mesma hora com a mesma cara pelos mesmos motivos para
os mesmos fins. Renda a pagar até dia 8. Crianças-clones-de-crianças.
Adolescentes mais phone do que smart. Adultos sem um livro,
sequer um jornal, nas unhas. O presidente Marcelo mais ubíquo do que Nosso
Senhor. Gente por modos pasteurizada. Falas estéreis, sem favo nem mel. Este é
um milénio de trampa-bolsonara, por assim dizer. Menos comunicação pertinente
quão mais tecnologia de infocomunicaçãomática, por assim dizer. Telenovelas,
celebridades & novos-talentos: tudo lã-de-cão, merda tudo.
(...)
VI
Com
os anos, os danos.
(Pronto,
provérbio inventado mesm’agora.)
VII
Vê-se
daqui a retaguarda do Cemitério da Conchada – urbanização perfeita do tipo
habitação-horizontal. Dorme lá o meu Amigo Guilherme Pais. Dorme – digo
eu. Digo mal porque eufemizo.
Mas
estou com azar: perto (demasiado perto) da minha mesa, vozeiam dois energúmenos,
um de pele preta, outro de pele-lixívia. Proferem frases merdosas a propósito de
assuntos de caça. Fumaram daquilo-que-faz-rir, nota-se a léguas. (A
léguas deveriam estar eles, não eu, que me sei comportar, sendo de platina a
minha mudez.) Não tarda, volto para casa. Esperai! Alegria! Foram-se embora. Em
lugar deles, surge no meu campo-óptico-lente-progressivo um delicioso
pré-sexagenário de camisola cor-de-laranja, calção verde-rebuçado-mentol & sandalinha
de napa fura-dedão. Ó coisa linda! Ó bijou-de-sua-vovó! Ei-lo smartphonando
peregrinamente: nossa-senhora-atrás-nossa-senhora-à-frente. Coisa rica, de tão
pobreca. Parece um anúncio a laranjada dos anos 60/XX, quando ainda se dizia laranjada
em vez de sumo ou néctar. Quadris mínimos de cabrito. Unhas amarelentas,
de padecente hepático-pulmonar. Barba de três dias, tipo capim esbranquiço. Cachucho
& cordão de ouro-dos-ciganos. Mas olhai!, bebe à homem: ao balcão, café
& brandy em balão grande, mam’ó!
Salva-me
um pardal do entardenoitecer. Veio às migalhas da esplanada. Colhe o fruto caído
– como eu tantas vezes tento o verso.
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