82.
POR DENTRO UIVANDO
Coimbra, quinta-feira,
18 de Junho de 2020 (I)
Coimbra, sexta-feira,
19 de Junho de 2020 (II)
Coimbra, sábado, 20 de
Junho de 2020 (III & ss.)
I
Lembra-te
de que venho de um país tão magro quanto este. Em exílio, uma pessoa percebe
mais bem as manigâncias da morte: ninguém conhecido lhe aparece – e ela não se
parece com alguém a ninguém. Os que eram rostos foram trocados por caras. E nenhum
nome faz soar qualquer sineta. Posto isto, aqui me tens.
II
Úria
Hipólito, estabelecido neste povo há bem mais de quarenta anos. Conhecedor de
origens, rumos, somatórios & restos-zero. Viajou, tomou notas, foi sabendo
ouvir, mudando com o corpo. Ampla gama de interesses lúdicos; filmes-de-terror,
memorabília fotográfica de Oitocentos, borboletas vivas, cronolinhas. Nos anos
70/XX, conviveu com o cantor David B. e com o médico de S. de R. Preto. Guardou
relicário de ambos: em boa-hora, pois que ambos são já mármore. Úria ainda se
demora mais um pouco.
III
Continuam
os ajuntamentos “espontâneos” em “festas” públicas. Ovelhas & carneiros
bípedes “ajuntam-se” alegre & acefalamente, contaminando-se descuidosamente.
A “massa” é estúpida até doer. O rebanho é “jovem”, é “irreverente”. Tempo vazio,
este: tempo-pimba, época-balão, era-zero.
IV
Sim,
uivo por dentro a uma lua que não há.
Sim,
o meu corpo é deste tempo inescapável.
Não,
não vale a pena orar à clemência de Rá.
Não,
viver não é tudo de todo em todo amável.
Mais
máquinas electronicoisas não ensinam.
Comunicar
é utopia, ladrar é moda.
Egos
esvaziados plenam o ar, que contaminam
em
prol da neomerda que, alegre, roda.
Esfuzia
por nada a fútil estupidez,
a
pimbalhada depende só do grau de acidez.
Nunca
leu um livro, este gente bacoca
que
esguicha mijo pela merda da boca.
Século
XXI, Milénio Terceiro, balões do nada:
antes
fôsseis fósseis de cães atropelados à berma da estrada.
V
Gente
sem comida, muita sem tecto.
Planeta
a abarrotar, vírus à solta.
Ser
humanista tornou-se obsoleto.
Ventos não há semeadores da revolta.
Sou
humanista sozinho num primeiro-andar.
Vai
havendo para o gasto neste por-enquanto.
Do
mesquinho a bola vou chutando p’ra canto.
Parece
que a caloraça veio p’ra (se) vingar.
VI
Isto
vai funcionando por imagens vocabulares.
A
transmissibilidade delas, sei-o, é duvidosa.
Há
um amargor contínuo, sim, no ser da rosa.
Já
não vou tanto a tascos & a bares.
Esvazia-se
rápido o ano; lento, encho o caderno.
Vou
à loja de velhos munir-me de livralhada.
O
resto pouco me diz, a que digo nada.
O
rosto ’inda diz ao espelho-d’inverno.
Somos
felizes sem história, adiado relato.
Houve
o tempo da chuva, p’ra que havia recato.
Há
um Fulham - Brentford na TV do quarto.
E
há o Menino – o meu bel-níveo Gato.
Isto
resulta da oposição eu-mundo.
O
mundo vai ficar, eu também por-enquanto.
Ser
só uma vida tem seu próprio encanto.
Em
mudez talvez feliz, sobrecenho iracundo.
Duas
mulheres envelhecidas maldizem terceira.
Na
orla do Choupal rasa a ventania.
Além
da janela, tudo é fronteira.
Não
lobrigo infância nem topo alegria.
Imagiversos
meus, mundo resoluto.
Universos
sandeus, ao fundo a Cidreira.
Com
eira & à beira, sagaz & astuto.
Bruto
é que não, curta vida inteira.
VII
Por
calendário, começa o Verão.
Não
gosto, mas nada posso contra.
Cerrar
persianas, correr cortinas.
Dar
de comer às aves, fruir livros.
Há
um Atlético Madrid – Valladolid na TV do quarto.
Revi
hoje Laura Alves & Adrien Brody.
Verdade
que li pouquíssimo.
A
máquin’imagética logrou distrair-me.
Ouvi
um pouco de Supertramp & de Uriah Heep.
Lamentei,
portanto, D. Crosby & G. Thain.
Pensar,
pensei sem pensar nisso.
Andei
de calções-de-manga-curta, chinelei.
Houve
pão fresco, frango de ontem, chá frio.
De
ontem para hoje, dormi escandalosamente.
Sim,
dormi umas onze horas.
Acordei
como se nascesse, isto é, contrariado.
Refez-me
a funda chávena de café feito na hora.
Bebi-o
na marquise, respirando de olhos o Campo.
Odiáxere
& Carcavelos foram sinónimos de rebanhos criminosos.
A
acéfala grei quer é fartazanar-se de festança monga.
O
senhor Presidente da República é de imparável ubiquidade.
As
rádios nacionais são insuportáveis, chunga de “bem-dispostos”.
Tirando
o Ricardo Araújo Pereira, os novos palhaços valem zero.
O
senhor Primeiro-Ministro tem o irmão no Expresso, deus lhe perdoe.
A
democracia etc.&tal, não sejamos ingratos.
Um
Salgueiro Maia nasce de dois em dois séculos – ou coiso.
Um
Salgueiro nasce mas-é milénio sim, milénio não.
O
que mais nasce ou é burro ou é palha.
(Mas
antes burro que cigano, dizia o Etelvino – e bem.)
(E
antes Etelvino que Daniel – digo-o eu também.)
Do
aparente triunfo-dos-porcos goza muito o crematório.
Recebi
anteontem mensagem sobre assunto afim.
Respondi
por escrito que me ria muito, congratulei até.
O
mensageiro ficou apreensivo, absorto, olhos-de-carneiro-mal-morto.
Não
é que eu queira mal aos maldosos, não é.
É
tão-só que arrefeço de indiferença, só isso.
Redes-sociais, dizias? Galinheiros da caquinha desmiolada.
São
como pôr o orelhas-do-noticiário ao pé da literatura.
Ou
o Camões a escrever o como-o-macaco-gosta-de-bananas.
(Eu
gosto de ti.)
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