15/10/2020

VinteVinte - 82 (já agora, os romanos todos daqueles dias)


 

82.

 

POR DENTRO UIVANDO

 

Coimbra, quinta-feira, 18 de Junho de 2020 (I)

Coimbra, sexta-feira, 19 de Junho de 2020 (II)

Coimbra, sábado, 20 de Junho de 2020 (III & ss.)

 

I

 

Lembra-te de que venho de um país tão magro quanto este. Em exílio, uma pessoa percebe mais bem as manigâncias da morte: ninguém conhecido lhe aparece – e ela não se parece com alguém a ninguém. Os que eram rostos foram trocados por caras. E nenhum nome faz soar qualquer sineta. Posto isto, aqui me tens.

 

II

 

Úria Hipólito, estabelecido neste povo há bem mais de quarenta anos. Conhecedor de origens, rumos, somatórios & restos-zero. Viajou, tomou notas, foi sabendo ouvir, mudando com o corpo. Ampla gama de interesses lúdicos; filmes-de-terror, memorabília fotográfica de Oitocentos, borboletas vivas, cronolinhas. Nos anos 70/XX, conviveu com o cantor David B. e com o médico de S. de R. Preto. Guardou relicário de ambos: em boa-hora, pois que ambos são já mármore. Úria ainda se demora mais um pouco.

 

III

 

Continuam os ajuntamentos “espontâneos” em “festas” públicas. Ovelhas & carneiros bípedes “ajuntam-se” alegre & acefalamente, contaminando-se descuidosamente. A “massa” é estúpida até doer. O rebanho é “jovem”, é “irreverente”. Tempo vazio, este: tempo-pimba, época-balão, era-zero.

 

IV

 

Sim, uivo por dentro a uma lua que não há.

Sim, o meu corpo é deste tempo inescapável.

Não, não vale a pena orar à clemência de Rá.

Não, viver não é tudo de todo em todo amável.

 

Mais máquinas electronicoisas não ensinam.

Comunicar é utopia, ladrar é moda.

Egos esvaziados plenam o ar, que contaminam

em prol da neomerda que, alegre, roda.

 

Esfuzia por nada a fútil estupidez,

a pimbalhada depende só do grau de acidez.

Nunca leu um livro, este gente bacoca

que esguicha mijo pela merda da boca.

 

Século XXI, Milénio Terceiro, balões do nada:

antes fôsseis fósseis de cães atropelados à berma da estrada.

 

V

 

Gente sem comida, muita sem tecto.

Planeta a abarrotar, vírus à solta.

Ser humanista tornou-se obsoleto.

Ventos não há semeadores da revolta.

 

Sou humanista sozinho num primeiro-andar.

Vai havendo para o gasto neste por-enquanto.

Do mesquinho a bola vou chutando p’ra canto.

Parece que a caloraça veio p’ra (se) vingar.

 

VI

 

Isto vai funcionando por imagens vocabulares.

A transmissibilidade delas, sei-o, é duvidosa.

Há um amargor contínuo, sim, no ser da rosa.

Já não vou tanto a tascos & a bares.

 

Esvazia-se rápido o ano; lento, encho o caderno.

Vou à loja de velhos munir-me de livralhada.

O resto pouco me diz, a que digo nada.

O rosto ’inda diz ao espelho-d’inverno.

 

Somos felizes sem história, adiado relato.

Houve o tempo da chuva, p’ra que havia recato.

Há um Fulham - Brentford na TV do quarto.

E há o Menino – o meu bel-níveo Gato.

 

Isto resulta da oposição eu-mundo.

O mundo vai ficar, eu também por-enquanto.

Ser só uma vida tem seu próprio encanto.

Em mudez talvez feliz, sobrecenho iracundo.

 

Duas mulheres envelhecidas maldizem terceira.

Na orla do Choupal rasa a ventania.

Além da janela, tudo é fronteira.

Não lobrigo infância nem topo alegria.

 

Imagiversos meus, mundo resoluto.

Universos sandeus, ao fundo a Cidreira.

Com eira & à beira, sagaz & astuto.

Bruto é que não, curta vida inteira.

 

VII

 

Por calendário, começa o Verão.

Não gosto, mas nada posso contra.

Cerrar persianas, correr cortinas.

Dar de comer às aves, fruir livros.

Há um Atlético Madrid – Valladolid na TV do quarto.

Revi hoje Laura Alves & Adrien Brody.

Verdade que li pouquíssimo.

A máquin’imagética logrou distrair-me.

Ouvi um pouco de Supertramp & de Uriah Heep.

Lamentei, portanto, D. Crosby & G. Thain.

 

Pensar, pensei sem pensar nisso.

Andei de calções-de-manga-curta, chinelei.

Houve pão fresco, frango de ontem, chá frio.

De ontem para hoje, dormi escandalosamente.

Sim, dormi umas onze horas.

Acordei como se nascesse, isto é, contrariado.

Refez-me a funda chávena de café feito na hora.

Bebi-o na marquise, respirando de olhos o Campo.

Odiáxere & Carcavelos foram sinónimos de rebanhos criminosos.

A acéfala grei quer é fartazanar-se de festança monga.

 

O senhor Presidente da República é de imparável ubiquidade.

As rádios nacionais são insuportáveis, chunga de “bem-dispostos”.

Tirando o Ricardo Araújo Pereira, os novos palhaços valem zero.

O senhor Primeiro-Ministro tem o irmão no Expresso, deus lhe perdoe.

A democracia etc.&tal, não sejamos ingratos.

Um Salgueiro Maia nasce de dois em dois séculos – ou coiso.

Um Salgueiro nasce mas-é milénio sim, milénio não.

O que mais nasce ou é burro ou é palha.

(Mas antes burro que cigano, dizia o Etelvino – e bem.)

(E antes Etelvino que Daniel – digo-o eu também.)

 

Do aparente triunfo-dos-porcos goza muito o crematório.

Recebi anteontem mensagem sobre assunto afim.

Respondi por escrito que me ria muito, congratulei até.

O mensageiro ficou apreensivo, absorto, olhos-de-carneiro-mal-morto.

Não é que eu queira mal aos maldosos, não é.

É tão-só que arrefeço de indiferença, só isso.

Redes-sociais, dizias? Galinheiros da caquinha desmiolada.

São como pôr o orelhas-do-noticiário ao pé da literatura.

Ou o Camões a escrever o como-o-macaco-gosta-de-bananas.

 

(Eu gosto de ti.)

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Canzoada Assaltante