28/10/2020

VinteVinte - 92 (versão abreviada)


Era então ali às Lajes há demasiados anos
Já lá ninguém mora à Machadinha
Arrasaram a casa, mau proveito lhes faça.





92.

 

PALAVRAS, TRÁ-LAS O VENTO

 

Coimbra, quinta-feira, 2 de Julho de 2020

 

 

 

 

O vento cantor tomou conta do nosso páramo

Ele vento é verso transparente rente à luz

De casa o ouço cantando sílabas também aves

Nunca lhe direi que não, que o não (ch)amo.

 

Também dele jamais me canso por dentro de pensá-lo

Ele sitia-me a casa sem senti-la imigo obstáculo

Nenhuma das minhas memórias o invalida, antes reitera

E ele traz-me nomes aos olhos como benignos fantasmas.

 

Não é que ele seja humano, é fenómeno meteorológico

Mas não deixa de ser companheiro só por causa de tal

Sinto-o lá fora aqui dentro como uma ideia certa

Uma nota grande no bolso, uma paz dinâmica.

 

Escrevi hoje versos perfunctórios como ele não é

Diferem eles dele por ele tornar, eles já talvez não

Perfume claro a verdes por ele atravessados

À minha janela, essa corrida sem campeão.

 

Devagar ilusoriamente ele desassenta praças

Como a que em Mafra assentei eu, era Março/88, dia 8

Tudo dura pouco tempo mas muito vento

É bom habitar um páramo promontório a nada subido.

 

A nada subido porque nenhum deus, alguma nuvem sim

Alguma ave rondando a patrulha de seu nascimento

Reproduzem-se as aves por ilusão de repetição

Repetição obrigativa, adjectivo que aprendi em Castilho, acho eu.

 

Por uma hora ou coisa assim a sesta da vida

Uma pessoa torna-se vesperal, até a anoitecer se habitua

Comungamos todos o pão que o diabo esquece

Eu à janela nem menos nem mais sou que outro alguém.

 

Há nisto uma eólica melancolia afinal inócua

Casado com a farmacêutica foi Elias, depois viúvo

Eólica melanco(ó)lica paz talvez podre a nossa

Elias à minha janela quando saio a ir aos fósforos.

 

Às 16h42m o meu Gato requisita-me colo

Correu muito, brincou muito, deitou abaixo um retrato

Aquele retrato em que meu Pai pensa um fontanário

Ter tido um Pai & manter um Gato, duas fortunas.

 

Apesar de par, este ano não há Rainha Santa processionada

Há-de por aí entristecer a turba coimbrã-devota

É devoção aliás não das piores, pão por rosas

Antes mataram a Inez de Pedro amásia & triste.

 

Todavia a quinta é feira não das lágrimas

Era então ali às Lajes há demasiados anos

Já lá ninguém mora à Machadinha

Arrasaram a casa, mau proveito lhes faça.

 

Residuais poemas sinfónicos pelo mato esfolhados

Colhi trechos de alguns em minha surdina

Era em Maio, tão eu quão ela menina

Haydn ou um dos Freitas Branco, minucioso olvido.

 

Das bíblicas pragas, é a maior a mesma Bíblia

Hebraica mafoma de fanáticos constantinos piscicatacumbos

Genuflectida cambada adorando o cu à mosca

Só à minha Ti’ Maria perdoo o calendário-paulo-sexto.

 

Ressuscita à minha janela só quem quero

E quando quero sou só & quando não, também

Escusado aceder ao pátio, não é lá a Mãe

O vento é coisa meteorológica, não é ela.

 

Pandemónios do consumismo aqui não logram porto

O mesmo seja que aqui não têm cabidela

Pirei-me outrora de Lisboa sem rasto deixar nem rosto

Tudo é conforme à pachecal indiferença, assim seja.

 

A capital de França não é para mim, já não existe

A capital de Inglaterra, tal & qual supra digo

É preferível descer deste páramo, tomar o comboio

Ir da Estação Velha à Figueira, ser feliz com pouco.

 

No ano anterior ao da nascença de meu Tio Alberto

Em 1913 portanto foi Wenceslau de Moraes para Tokushima

Recordo o tácito desvanecimento meu pela primeira vez

Que dele li um livro, Traços do Extremo Oriente.

 

Singular figura de 30 de Maio de 1854

Irmão de Francisca & Emília

Que o vento me devolve como se fôra Natal

Homem feito papel, tinta, ele próprio eólico.

 

Dizem que portuguesmente amou uma Maria Isabel

Maria Isabel dos Santos nascida a 15-12-1846

Casada porém com outro a 6-9-1873

Cuja mãe diziam ter sido professora de piano & ligeira.

 

Eu não fui como ele foi oficial-de-marinha

Partilho quando muito algum trecho de sua quimera

Mas foi ele a chegar a Macau a 7 de Junho de 1888

E seis dias depois nascia em Lisboa Fernando António Nogueira Pessôa (*)

(*sim, com circunflexo, como vem no registo)

 

O mais que posso é escutar o vento canoro

Fazer de conta que é mar o bosquete ali em baixo

Reler escrupulosamente os traços extremos

Abrir em flor o jardim invisível & silábico.

 

Hoje é dia ganho desde cedo, há horas que o vento canta

Há muito conta ele de si o verso ininterrupto

Gosto de sua indócil rispidez de moço abrupto

Gosto & guardo em cena que não atrasa nem adianta.

 

E meu é mundo felizmente impermeável a caducos

Sigo por as minhas linhas com a saúde possível

O alheio mundo é quinta de alheios malucos

E eu tenho mais que fazer, isso é irredimível.

 

Cumpro o meu nome em sociedade anónima

Por isso sou de responsabilidade limitada a acções minhas

Não moralizo para fora, isto é tudo para consumo da casa

Até por não achar já universal certa poesia.

 

Privatizo tudo aquilo que, nascendo, se me nacionalizou

Nem egoísta nem egotista, muito menos umbiguista

Pode merecer interesse & ter atenção algum verso

O resto é alheio paleio aliás chunga & aliás feio.

 

Arde pinhal lá para Valado dos Frades

Onde mui jovem o matrimónio de meus Pais viveu

Não sei já quanto tempo mas algum foi

Chamaram lá a arte do meu Pai, não ganhava mal.

 

Foi tal há muitas décadas de século & milénio volvidos

Eram então jovens ambos, voltam a sê-lo agora

É bom ter a migalha de um verso para lhes dar

Acalentar-lhes a lembrança em não-impura gratidão.

 

Poente se vai fazendo o sol juliano já

Mas desistir não desiste a canora ventania

Que o dia teve por festa aberta a todos

E a que ofereço o que posso e estas linhas é.

 

Estão por enquanto, entretanto, salvaguardadas as condições

Para dar fronte que frente faça à noite nova

Frutuosa seja ela, por favor, em doçura de sono

Melhor seria dormir o Verão, acordar só em o Outono.

 

O Gato, mais inteligente, fez duas profundas sestas

Eu não, entreteve-me gozar um bocadito o prato

Não dei corda aos rumores surdinos da malquerença

Criança anacrónica eu seria se lhos a dera.

 

Assumo sem mor contrariedade a imponência fria

A imponência fria dos eixos de que roda a efemeridade

Quero tão-só conversar (e conservar) de alguns livros o proveito

& ir levando a eito a morte certa na incerta vida.

 

Sorrio certa não-despicienda amargura ante casos

Casos de casas erguidas sobre moventes fundações

Ainda assim de agras, mordentes, caninhas opiniões

Sobre o alheio destino que afinal as não inveja.

 

Pecadilho menor, enfim, humanóide circunstância

Maldizer do alheio sem cuidar da indecência própria

Também a poesia & o surf são bonitas inúteis coisas

Mais pena tenho eu das putas, casadas ’ind’algumas.

 

O meu desgosto é meu, ninguém o merece

O meu remorso é meu filho, eu que o sustente

Foge de mim quem não persigo, q’até parece

Que a tal quem enganei chamando-lhe gente.

 

Se vou ali-baixo ao Choupal, sim, sinto Camões

Também venero que por aqui nascera Camilo Pessanha

É gratificante responder alhures – Sou de Coimbra

Antes nascer aqui, enfim, do que ser apanhado a roubar.

 

Fui explicando de Latim do Dr. Moura

Aluno a História do Dr. Severo de Melo

Quatro anos fui primário do Sr. Prof. Elias

Acumulo fortunas, notórias no como-escrevo.

 

A minha é ora outra escola

Sala vazia, ecoam só(s) meus passos

Às vezes saio a beber uns bagaços

Mas volto quase sempre a tempo da bola.

 

O entardenoitecer em Buenos Aires é-me só imaginável

Não chego a lá ir vê-lo, sobra-me pouca vida

Para mais tal dispêndio me não está em posses

– Por causa das tosses, fico por Coimbra.

 

Da puberdade conservo ter aprendido Francês

Que hoje me faz jeito para a Yourcenar

Entendo o Ferré, que é poeta sem par

(Mas vinho prefiro do nosso transmontês).

 

Quando por boa-sorte durmo sem sonhos

Sinto-me de novo uterino, fetal astronauta

A Mãe já ’qui não mora, mas não são medonhos

Os adamastores & a navegação incauta.

 

Lá fora, no dito Real, morrem covidamente

Pessoas sem nomes que os saibamos a gente

Anda muita família por aí enlutada

Eu perdi já os meus Velhos, por tal temo nada.

 

Não sei se chego a velhinho-em-lar-terminal

Descuido o cenário, vou sendo qual cigarra

A minha pátria é Coimbra; a nação, Portugal

Persigo a ninguém & também ninguém m’agarra.

 

Graçazadeus já por ’í não ando erogenamente

Co’s anos devém felizmente o sossego assexuado

Correu-me malzito o desejo, antes a cortara

E dá-la de comer aos bichos, que também são gente.

 

Podeis, enfim, conferir que alguma coisa trabalhei hoje

É virtude que apreciei sempre, essa de trabalhar o dia

É verdade também que o meu trabalho não é cotável na Bolsa

Mas sempre leva ao cemitério ou à incineradora.

 

Sinto às vezes (mas poucas & por pouco tempo) pena

Pena disto, deste, daquela & daquilo

Choro então grossíssimas lágrimas-de-crocodilo

Dá-me para dramática persona, olhai que cena.

 

Outras porém não, sentir não se me arroga.

Não sinto. Não minto: deveras não sinto.

Antes isso do que andar na droga

A arranjar dinheiro para o tinto.

 

Só mui passageiramente ’té hoje li Jules Supervielle

Hemingway já não leio, Jorge Amado muito menos

Queria antes cortinados da cor da V.ª pele

Assim com cetins & cordões grossos & não-pequenos.

 

Já a Manuel António Pina dei bem a atenção devida

E a Luiz Pacheco, João Damasceno & Alberto Pimenta

O Victor Hugo é datado, ganhava ao metro a vida

O que aliás não é pecado – mas nem sempre s’aguenta.

 

A Língua-Portuguesa-de-Portugal tem seus tesouros-de-igreja

Relíquias desconcertantemente ignoradas pelo povo mesmo

Certas filmagens (é o termo) do grande Camilo Castelo Branco

Certas fórmulas finais de acabamento puro do Santo Eça.

 

Vou de vez em quando, é certo, ao estrangeiro

Lord Tennyson & Fielding são admiráveis sacanas

Já o Camões deles, Shakespeare, n’é nada mau

– & o irmão Cervantes é a Lua no Prado Solar.

 

Antes de tanto livro, lá na PaterMaterCasa, era o Diário de Lisboa

O que em casa eu lia depois de o Pai ler

Recordo bons limpos claros parágrafos d’excelso jornalismo

Besta entretanto extinta agora em electroanalfabetismo.

 

Em 2004 ’inda comecei licenciatura em Direito

Que não concluí por gritante falta de massas

Disso sim, tenho pena, seria doutor de telejornais

Daria a moldura jurídica, o enquadramento, a manhosa interpretação.

 

Assim todavia é que não

Assim não chego pragmaticamente a uma reforma gorda

Morrerei inchado de magrezas bebidas

Antes isso porém que usar unhas compridas.

 

O ocaso da década de 60/XX? Tenho assombros intermitentes

Mal então me iniciava eu em trabalho museológico

Nostálgico eu já então do instante ainda por-vir

– & meus Pais eram vivos & de recomendável saúde.

 

A de 70/XX é mormente Julho / mormente praia

Juntava-se-nos a Avó Cândida, sendo nós portanto

Eu-filho-&-neto + Mãe + Mãe-da-Mãe

Daí que eu saiba ’ind’oje tão bem falar com senhoras.

 

Tempos meus, enfim, sem charlesdickensustos

Que eu não era órfão (nem a pobreza, excessiva)

Sei que a brancura da luz era então bem mais viva

– & o Outono era vero & havia magustos.

 

Acalmou-se a ventania, já cedo não é muito

Recolheram-se as aves, guardei-lhes alimento

A casa não é vã, não mandeis bocas vãs vós

O Gatito sossegou, saciado & ’nininho.

 

Posso & devo & quero fazer (d)isto o resto da vida

Depois de s’aprender, é de praticar-se o aprendido

Nada mais tem ou faz sentido

E tudo é de borla, sem dúvida ou dívida.

 

Sentada galeria de seres envelhecidos humanos

Mais mulheres do que homens, pois naturalmente

Gestão económica de ganhos & danos

Vêm cá os netinhos ao museu da gente.

 

Eu ainda não, mas ele há hoje gente

Que anda pedindo teres-que-comeres

Eu sei que não é de hoje a pedincha

Mas que é triste, isso sim, homens & mulheres.

 

O melhor é ir envelhecendo sem recordar o diabo

Ir indo pela sombra, que o sol ’inda é muito

Eu próprio já sei que já só acabar acabo

Mudando de estrofe, não mudo de assunto.

 

A Virgem-Senhora-do-Altar-do-Mundo

Há-de pedir ao Senhor-Deus-que-Nos-Valha

A terra nunca foi de quem se baralha

E confunde o fundo co’ fundo do fundo.

 

Revejo as datas do senhor Almeida Garrett

Tão poucos anos viveu – mas quão duradouro

Resta, em Língua, o garrettiano tesouro

Homem do caraças & o diabo-a-sete!

 

Distrai-me entretanto a velhinha da Saúde

Aquela dos mortos-nossos-de-cada-(covi)dia

Deve ser de salário proporcional à virtude

Q’ali a fez subir, digo-o eu sem perfídia.

 

Aparece depois uma loira oxigenada

À força-coiffeur, mamitas-botox

Pescoço já galinha, perna causticada

Tipo photomaton-&-som-ultravox.

 

(...)

 

Envelheço porque sinto revelha cada novidade

Q’isto de ler História sempr’ensina em frente

Ando por Coimbra mas não, p’la Cidade,

Relembro a origem do nosso diferente.

 

Em Agosto/80/d0/XX, eu estava no camping da Gala

Morreram o Rui do Alpha & o meu Tio Alberto

O Rui morreu no mar; o meu Tio, no Caramulo

– & eu lia Os Maias pela vez minha primeira.

 

(...)

 

Em caso de comigo partilhardes vitalícia orfandade

Que de V.ª íntima soledade podereis dizer-me?

Ser órfão, bem o sei, não torna por lei verme

O bípede sofrido de tal infelicidade.

 

Mas dizei-me: não sentis ’inda certa brecha

Na muralha q’éreis p’ra ser lá neste futuro?

Não V. parece traspassado a dura frecha

O mesmo coração q’era puro mas não duro?

 

Amaramente brinco com as sílabas competentes

Tenho mais que duas infâncias, tu vai bugiar

Desço sempre alegre a dos Combatentes

À volta, sou triste – é do meu pen(s)ar.

 

Ninguém vai comigo comprar um Steinbeck em 1981

Eu posso dizer a alguém o que li encantadamente

Gosto de partilhar ilusionismos com gente

Que saiba o valor no mercado da lata-de-atum.

 

A luz certa na pintura, sabeis?, send’embora tudo tinta

O poema absoluto dos vicentes-comedores-de-batatas

Haver p’ra esta poesia um uno único fideputa que sinta

A falta que faz cagar nos pataratas.

 

O oboé em fio perfeitissimamente exacto

Q’abandona o conjunto & se faz nova lei

O compasso marcado com pés tipo pato

E o hino que exalta a burrice da grei.

 

O vento canta sitiando a minha casa terminal

Ouço o zunir sem chamar nomes (p’r)a quem o ouça

Passa ele pela minha vida como meus Pais passaram

Dá-me origem toda – quanto ao resto, é só enigma.

 

Dei miudamente arroz fervido às minhas aves

Hoje é dia de ter sido dia de merecer a noite pura

Pensais mal Vós, se pensais que por suaves

Prestações mensais eu pediria manhã futura.

 

Não. O que for, agora seja

Como o demorado vinho ou a brusca cerveja

O vento veio, veio palavroso

– & eu gozei-vos o prato em acinte verboso.  


 

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Canzoada Assaltante