Era então ali às Lajes há demasiados anos
Já lá ninguém mora à Machadinha
Arrasaram a casa, mau proveito lhes faça.
92.
PALAVRAS, TRÁ-LAS O VENTO
Coimbra,
quinta-feira, 2 de Julho de 2020
O
vento cantor tomou conta do nosso páramo
Ele
vento é verso transparente rente à luz
De
casa o ouço cantando sílabas também aves
Nunca
lhe direi que não, que o não (ch)amo.
Também
dele jamais me canso por dentro de pensá-lo
Ele
sitia-me a casa sem senti-la imigo obstáculo
Nenhuma
das minhas memórias o invalida, antes reitera
E
ele traz-me nomes aos olhos como benignos fantasmas.
Não
é que ele seja humano, é fenómeno meteorológico
Mas
não deixa de ser companheiro só por causa de tal
Sinto-o
lá fora aqui dentro como uma ideia certa
Uma
nota grande no bolso, uma paz dinâmica.
Escrevi
hoje versos perfunctórios como ele não é
Diferem
eles dele por ele tornar, eles já talvez não
Perfume
claro a verdes por ele atravessados
À
minha janela, essa corrida sem campeão.
Devagar
ilusoriamente ele desassenta praças
Como
a que em Mafra assentei eu, era Março/88, dia 8
Tudo
dura pouco tempo mas muito vento
É
bom habitar um páramo promontório a nada subido.
A
nada subido porque nenhum deus, alguma nuvem sim
Alguma
ave rondando a patrulha de seu nascimento
Reproduzem-se
as aves por ilusão de repetição
Repetição
obrigativa, adjectivo que aprendi em Castilho, acho eu.
Por
uma hora ou coisa assim a sesta da vida
Uma
pessoa torna-se vesperal, até a anoitecer se habitua
Comungamos
todos o pão que o diabo esquece
Eu
à janela nem menos nem mais sou que outro alguém.
Há
nisto uma eólica melancolia afinal inócua
Casado
com a farmacêutica foi Elias, depois viúvo
Eólica
melanco(ó)lica paz talvez podre a nossa
Elias
à minha janela quando saio a ir aos fósforos.
Às
16h42m o meu Gato requisita-me colo
Correu
muito, brincou muito, deitou abaixo um retrato
Aquele
retrato em que meu Pai pensa um fontanário
Ter
tido um Pai & manter um Gato, duas fortunas.
Apesar
de par, este ano não há Rainha Santa processionada
Há-de
por aí entristecer a turba coimbrã-devota
É
devoção aliás não das piores, pão por rosas
Antes
mataram a Inez de Pedro amásia & triste.
Todavia
a quinta é feira não das lágrimas
Era
então ali às Lajes há demasiados anos
Já
lá ninguém mora à Machadinha
Arrasaram
a casa, mau proveito lhes faça.
Residuais
poemas sinfónicos pelo mato esfolhados
Colhi
trechos de alguns em minha surdina
Era
em Maio, tão eu quão ela menina
Haydn
ou um dos Freitas Branco, minucioso olvido.
Das
bíblicas pragas, é a maior a mesma Bíblia
Hebraica
mafoma de fanáticos constantinos piscicatacumbos
Genuflectida
cambada adorando o cu à mosca
Só
à minha Ti’ Maria perdoo o calendário-paulo-sexto.
Ressuscita
à minha janela só quem quero
E
quando quero sou só & quando não, também
Escusado
aceder ao pátio, não é lá a Mãe
O
vento é coisa meteorológica, não é ela.
Pandemónios
do consumismo aqui não logram porto
O
mesmo seja que aqui não têm cabidela
Pirei-me
outrora de Lisboa sem rasto deixar nem rosto
Tudo
é conforme à pachecal indiferença, assim seja.
A
capital de França não é para mim, já não existe
A
capital de Inglaterra, tal & qual supra digo
É
preferível descer deste páramo, tomar o comboio
Ir
da Estação Velha à Figueira, ser feliz com pouco.
No
ano anterior ao da nascença de meu Tio Alberto
Em
1913 portanto foi Wenceslau de Moraes para Tokushima
Recordo
o tácito desvanecimento meu pela primeira vez
Que
dele li um livro, Traços do Extremo Oriente.
Singular
figura de 30 de Maio de 1854
Irmão
de Francisca & Emília
Que
o vento me devolve como se fôra Natal
Homem
feito papel, tinta, ele próprio eólico.
Dizem
que portuguesmente amou uma Maria Isabel
Maria
Isabel dos Santos nascida a 15-12-1846
Casada
porém com outro a 6-9-1873
Cuja
mãe diziam ter sido professora de piano & ligeira.
Eu
não fui como ele foi oficial-de-marinha
Partilho
quando muito algum trecho de sua quimera
Mas
foi ele a chegar a Macau a 7 de Junho de 1888
E
seis dias depois nascia em Lisboa Fernando António Nogueira Pessôa (*)
(*sim,
com circunflexo, como vem no registo)
O
mais que posso é escutar o vento canoro
Fazer
de conta que é mar o bosquete ali em baixo
Reler
escrupulosamente os traços extremos
Abrir
em flor o jardim invisível & silábico.
Hoje
é dia ganho desde cedo, há horas que o vento canta
Há
muito conta ele de si o verso ininterrupto
Gosto
de sua indócil rispidez de moço abrupto
Gosto
& guardo em cena que não atrasa nem adianta.
E
meu é mundo felizmente impermeável a caducos
Sigo
por as minhas linhas com a saúde possível
O
alheio mundo é quinta de alheios malucos
E
eu tenho mais que fazer, isso é irredimível.
Cumpro
o meu nome em sociedade anónima
Por
isso sou de responsabilidade limitada a acções minhas
Não
moralizo para fora, isto é tudo para consumo da casa
Até
por não achar já universal certa poesia.
Privatizo
tudo aquilo que, nascendo, se me nacionalizou
Nem
egoísta nem egotista, muito menos umbiguista
Pode
merecer interesse & ter atenção algum verso
O
resto é alheio paleio aliás chunga & aliás feio.
Arde
pinhal lá para Valado dos Frades
Onde
mui jovem o matrimónio de meus Pais viveu
Não
sei já quanto tempo mas algum foi
Chamaram
lá a arte do meu Pai, não ganhava mal.
Foi
tal há muitas décadas de século & milénio volvidos
Eram
então jovens ambos, voltam a sê-lo agora
É
bom ter a migalha de um verso para lhes dar
Acalentar-lhes
a lembrança em não-impura gratidão.
Poente
se vai fazendo o sol juliano já
Mas
desistir não desiste a canora ventania
Que
o dia teve por festa aberta a todos
E
a que ofereço o que posso e estas linhas é.
Estão
por enquanto, entretanto, salvaguardadas as condições
Para
dar fronte que frente faça à noite nova
Frutuosa
seja ela, por favor, em doçura de sono
Melhor
seria dormir o Verão, acordar só em o Outono.
O
Gato, mais inteligente, fez duas profundas sestas
Eu
não, entreteve-me gozar um bocadito o prato
Não
dei corda aos rumores surdinos da malquerença
Criança
anacrónica eu seria se lhos a dera.
Assumo
sem mor contrariedade a imponência fria
A
imponência fria dos eixos de que roda a efemeridade
Quero
tão-só conversar (e conservar) de alguns livros o proveito
&
ir levando a eito a morte certa na incerta vida.
Sorrio
certa não-despicienda amargura ante casos
Casos
de casas erguidas sobre moventes fundações
Ainda
assim de agras, mordentes, caninhas opiniões
Sobre
o alheio destino que afinal as não inveja.
Pecadilho
menor, enfim, humanóide circunstância
Maldizer
do alheio sem cuidar da indecência própria
Também
a poesia & o surf são bonitas inúteis coisas
Mais
pena tenho eu das putas, casadas ’ind’algumas.
O
meu desgosto é meu, ninguém o merece
O
meu remorso é meu filho, eu que o sustente
Foge
de mim quem não persigo, q’até parece
Que
a tal quem enganei chamando-lhe gente.
Se
vou ali-baixo ao Choupal, sim, sinto Camões
Também
venero que por aqui nascera Camilo Pessanha
É
gratificante responder alhures – Sou de Coimbra
Antes
nascer aqui, enfim, do que ser apanhado a roubar.
Fui
explicando de Latim do Dr. Moura
Aluno
a História do Dr. Severo de Melo
Quatro
anos fui primário do Sr. Prof. Elias
Acumulo
fortunas, notórias no como-escrevo.
A
minha é ora outra escola
Sala
vazia, ecoam só(s) meus passos
Às
vezes saio a beber uns bagaços
Mas
volto quase sempre a tempo da bola.
O
entardenoitecer em Buenos Aires é-me só imaginável
Não
chego a lá ir vê-lo, sobra-me pouca vida
Para
mais tal dispêndio me não está em posses
–
Por causa das tosses, fico por Coimbra.
Da
puberdade conservo ter aprendido Francês
Que
hoje me faz jeito para a Yourcenar
Entendo
o Ferré, que é poeta sem par
(Mas
vinho prefiro do nosso transmontês).
Quando
por boa-sorte durmo sem sonhos
Sinto-me
de novo uterino, fetal astronauta
A
Mãe já ’qui não mora, mas não são medonhos
Os
adamastores & a navegação incauta.
Lá
fora, no dito Real, morrem covidamente
Pessoas
sem nomes que os saibamos a gente
Anda
muita família por aí enlutada
Eu
perdi já os meus Velhos, por tal temo nada.
Não
sei se chego a velhinho-em-lar-terminal
Descuido
o cenário, vou sendo qual cigarra
A
minha pátria é Coimbra; a nação, Portugal
Persigo
a ninguém & também ninguém m’agarra.
Graçazadeus
já por ’í não ando erogenamente
Co’s
anos devém felizmente o sossego assexuado
Correu-me
malzito o desejo, antes a cortara
E
dá-la de comer aos bichos, que também são gente.
Podeis,
enfim, conferir que alguma coisa trabalhei hoje
É
virtude que apreciei sempre, essa de trabalhar o dia
É
verdade também que o meu trabalho não é cotável na Bolsa
Mas
sempre leva ao cemitério ou à incineradora.
Sinto
às vezes (mas poucas & por pouco tempo) pena
Pena
disto, deste, daquela & daquilo
Choro
então grossíssimas lágrimas-de-crocodilo
Dá-me
para dramática persona, olhai que cena.
Outras
porém não, sentir não se me arroga.
Não
sinto. Não minto: deveras não sinto.
Antes
isso do que andar na droga
A
arranjar dinheiro para o tinto.
Só
mui passageiramente ’té hoje li Jules Supervielle
Hemingway
já não leio, Jorge Amado muito menos
Queria
antes cortinados da cor da V.ª pele
Assim
com cetins & cordões grossos & não-pequenos.
Já
a Manuel António Pina dei bem a atenção devida
E
a Luiz Pacheco, João Damasceno & Alberto Pimenta
O
Victor Hugo é datado, ganhava ao metro a vida
O
que aliás não é pecado – mas nem sempre s’aguenta.
A
Língua-Portuguesa-de-Portugal tem seus tesouros-de-igreja
Relíquias
desconcertantemente ignoradas pelo povo mesmo
Certas
filmagens (é o termo) do grande Camilo Castelo Branco
Certas
fórmulas finais de acabamento puro do Santo Eça.
Vou
de vez em quando, é certo, ao estrangeiro
Lord
Tennyson & Fielding são admiráveis sacanas
Já
o Camões deles, Shakespeare, n’é nada mau
–
& o irmão Cervantes é a Lua no Prado Solar.
Antes
de tanto livro, lá na PaterMaterCasa, era o Diário de Lisboa
O
que em casa eu lia depois de o Pai ler
Recordo
bons limpos claros parágrafos d’excelso jornalismo
Besta
entretanto extinta agora em electroanalfabetismo.
Em
2004 ’inda comecei licenciatura em Direito
Que
não concluí por gritante falta de massas
Disso
sim, tenho pena, seria doutor de telejornais
Daria
a moldura jurídica, o enquadramento, a manhosa interpretação.
Assim
todavia é que não
Assim
não chego pragmaticamente a uma reforma gorda
Morrerei
inchado de magrezas bebidas
Antes
isso porém que usar unhas compridas.
O
ocaso da década de 60/XX? Tenho assombros intermitentes
Mal
então me iniciava eu em trabalho museológico
Nostálgico
eu já então do instante ainda por-vir
–
& meus Pais eram vivos & de recomendável saúde.
A
de 70/XX é mormente Julho / mormente praia
Juntava-se-nos
a Avó Cândida, sendo nós portanto
Eu-filho-&-neto
+ Mãe + Mãe-da-Mãe
Daí
que eu saiba ’ind’oje tão bem falar com senhoras.
Tempos
meus, enfim, sem charlesdickensustos
Que
eu não era órfão (nem a pobreza, excessiva)
Sei
que a brancura da luz era então bem mais viva
–
& o Outono era vero & havia magustos.
Acalmou-se
a ventania, já cedo não é muito
Recolheram-se
as aves, guardei-lhes alimento
A
casa não é vã, não mandeis bocas vãs vós
O
Gatito sossegou, saciado & ’nininho.
Posso
& devo & quero fazer (d)isto o resto da vida
Depois
de s’aprender, é de praticar-se o aprendido
Nada
mais tem ou faz sentido
E
tudo é de borla, sem dúvida ou dívida.
Sentada
galeria de seres envelhecidos humanos
Mais
mulheres do que homens, pois naturalmente
Gestão
económica de ganhos & danos
Vêm
cá os netinhos ao museu da gente.
Eu
ainda não, mas ele há hoje gente
Que
anda pedindo teres-que-comeres
Eu
sei que não é de hoje a pedincha
Mas
que é triste, isso sim, homens & mulheres.
O
melhor é ir envelhecendo sem recordar o diabo
Ir
indo pela sombra, que o sol ’inda é muito
Eu
próprio já sei que já só acabar acabo
Mudando
de estrofe, não mudo de assunto.
A
Virgem-Senhora-do-Altar-do-Mundo
Há-de
pedir ao Senhor-Deus-que-Nos-Valha
A
terra nunca foi de quem se baralha
E
confunde o fundo co’ fundo do fundo.
Revejo
as datas do senhor Almeida Garrett
Tão
poucos anos viveu – mas quão duradouro
Resta,
em Língua, o garrettiano tesouro
Homem
do caraças & o diabo-a-sete!
Distrai-me
entretanto a velhinha da Saúde
Aquela
dos mortos-nossos-de-cada-(covi)dia
Deve
ser de salário proporcional à virtude
Q’ali
a fez subir, digo-o eu sem perfídia.
Aparece
depois uma loira oxigenada
À
força-coiffeur, mamitas-botox
Pescoço
já galinha, perna causticada
Tipo
photomaton-&-som-ultravox.
(...)
Envelheço
porque sinto revelha cada novidade
Q’isto
de ler História sempr’ensina em frente
Ando
por Coimbra mas não, p’la Cidade,
Relembro
a origem do nosso diferente.
Em
Agosto/80/d0/XX, eu estava no camping da Gala
Morreram
o Rui do Alpha & o meu Tio Alberto
O
Rui morreu no mar; o meu Tio, no Caramulo
–
& eu lia Os Maias pela vez minha primeira.
(...)
Em
caso de comigo partilhardes vitalícia orfandade
Que
de V.ª íntima soledade podereis dizer-me?
Ser
órfão, bem o sei, não torna por lei verme
O
bípede sofrido de tal infelicidade.
Mas
dizei-me: não sentis ’inda certa brecha
Na
muralha q’éreis p’ra ser lá neste futuro?
Não
V. parece traspassado a dura frecha
O
mesmo coração q’era puro mas não duro?
Amaramente
brinco com as sílabas competentes
Tenho
mais que duas infâncias, tu vai bugiar
Desço
sempre alegre a dos Combatentes
À
volta, sou triste – é do meu pen(s)ar.
Ninguém
vai comigo comprar um Steinbeck em 1981
Eu
posso dizer a alguém o que li encantadamente
Gosto
de partilhar ilusionismos com gente
Que
saiba o valor no mercado da lata-de-atum.
A
luz certa na pintura, sabeis?, send’embora tudo tinta
O
poema absoluto dos vicentes-comedores-de-batatas
Haver
p’ra esta poesia um uno único fideputa que sinta
A
falta que faz cagar nos pataratas.
O
oboé em fio perfeitissimamente exacto
Q’abandona
o conjunto & se faz nova lei
O
compasso marcado com pés tipo pato
E
o hino que exalta a burrice da grei.
O
vento canta sitiando a minha casa terminal
Ouço
o zunir sem chamar nomes (p’r)a quem o ouça
Passa
ele pela minha vida como meus Pais passaram
Dá-me
origem toda – quanto ao resto, é só enigma.
Dei
miudamente arroz fervido às minhas aves
Hoje
é dia de ter sido dia de merecer a noite pura
Pensais
mal Vós, se pensais que por suaves
Prestações
mensais eu pediria manhã futura.
Não.
O que for, agora seja
Como
o demorado vinho ou a brusca cerveja
O
vento veio, veio palavroso
–
& eu gozei-vos o prato em acinte verboso.
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