75.
NÃO ASSIM TÃO POUCO
Coimbra,
segunda-feira, 8 de Junho de 2020 (I)
Coimbra, terça, 9 de
Junho de 2020 (II-III)
I
J.
Trent Bentley, de Vauxhall, deixou de aparecer. Foi deixando aos poucos, até
que de vez o fez. Sem ele, as nossas noites volveram-se antigas à nascença. A
tertúlia tornou-se inviável. Tomámos a última bebida, saímos à vez. Ninguém se
despediu.
O
futuro não trouxe pena nem alívio. Foi o que foi enquanto foi. Deixou de ser. É
tudo. Claro que precisámos de envelhecer para que estes parágrafos vissem a
& viessem à luz. Não, nem mágoa nem remédio.
Trent
era o nosso maior. Sem ele, a nossa evidente menoridade fez-se gritante. Preferiu
cada um a solidão mais decente possível. Assim foi. Não nos mentimos. Também
não foi desistir. Foi deixar. Deixar-nos de. Deixarmo-nos.
Então,
deixámo-nos de nós, um eu tomou conta de cada um. Desconheço que ele será o eu
de Trent Bentley, que veio de Vauxhall & seguiu para onde não sei, não
soubemos.
Heinrich
M. Thaler era outra loiça. Manteve-se com aqueles a que, com acertada
propriedade, chamava seus. O cenáculo funcionou sempre, entendendo por
sempre a data do óbito do derradeiro comensal, que foi August P. Scheiber.
Veio a lume o Magno Dicionário Europeu. Viu a luz o Relatório da
Próxima Guerra Continental. Foram traduzidos autores da Arménia à África
Branca, de Xangai a Odessa, de Trondheim a Tavira. Thaler não deixou nem
herdeiros nem seguidores. Scheiber também não.
Nós
lemo-los a todos – mas pouquíssimo escrevemos de nosso. E esse pouquíssimo,
julgo-o cruamente hoje, antes houvera sido nenhum.
Diversas
afinidades para com o mundo imediato foram as sentidas, vividas &
praticadas por a plêiade de senhoras que os papéis encadernados mantêm sob a
designação de Ateneu Insular G.O.M. – sigla de God Only Matters. Devotas
eram, todavia, a um credo não-institucional. Isto é: não ligado a qualquer
prática eclesial doutrinada em vigor. O deus destas damas era literário,
personagem urdida colectivamente em livro dinâmico. Seis senhoras, sete dias da
semana. Faziam assim: a senhora Segunda-Feira escrevia durante a manhã
pós-dominical; à tarde, passava a limpo; à noitinha, um criado ia levar a
produção nova à senhora Terça-Feira – e assim consecutivamente até à noite do
Sábado. A tarde de cada Domingo era dada à leitura conjunta dos seis capítulos.
Rasurava-se, emendava-se, aprimorava-se, combatia-se a eventual incongruência
que pudesse desequilibrar a estrutura. Não havia então fotocopiadoras nem
informáticas. Tudo era uma vez só. Todos os livros manuscritos delas esperam
edição. O melhor de todos, na minha opinião, é o de 1917 – mas Bentley sempre
quis mais ao de 1924.
Gostávamos
todos muito de vê-lo rir muito, havendo achado graça a algo ou alguém. Ameaçava
desmanchar-se-lhe a grande compleição: em acordeão de riso, o largo ventre
refegava de ondas de banha, era um pândego contagioso. Depois, também ele
deixou de aparecer – se não mesmo de ser –, dorme hoje não sabemos onde: ou,
se, com quem.
II
A
bom dia, boa porfia. Acordei proverbial, ao cabo da breve noite – pois não eram
dadas as cinco quando me levantei. Aproveito o embalo de Madame de Sévigné:
“Car
que faire en un lit, à moins que l’on ne dorme?” (*)
(*)
Em carta à filha, Madame de Grignan, de quinta-feira, 2 de Novembro de 1673.
Segundo o Editor (Flammarion), a interrogação era paráfrase de La Fontaine, Livre
II, Fable XIV: “Une lièvre en son gîte songeait. Car que faire en
un gîte, à moins que l’on ne songe?”.
Sonhei
com o João da Bininha, um Amigo mui referencial da minha vida. Nasceu a 22 de
Junho de 1963, morreu (em Londres) a 23 de Agosto de 1998. Ele pedia-me que
confirmasse, junto de pessoas com quem estava, a existência portuguesa de
grupos de rock-progressivo nos anos 70-80/XX. Eu disse: “Tantra” – e ele
soltou uma alegre interjeição triunfal. Despertei aí. O sono não foi
angustiante: acordar dele é que um pouco, sim.
Já
enviei hoje a minha mensagem de pão & arroz à passarada deste canto do
mundo. É cedo ainda, faltam catorze para as seis. O gato Menino & eu
povoamos a cozinha há cerca de uma hora. Tenho a Sévigné, ele tem a bolita de
espuma amarelo-alaranjada. Já brincámos. Ele já repousa, cansadito & feliz:
com que Bininha (não) sonhará ele, ele que nunca teve outros seres que não as
pessoas desta Casa?
(E
o dia já está ganho: às 5h51m, o melro veio ao pão, encontrou, pegou &
levou.)
Ilha
do Príncipe Eduardo, Canadá.
S.
Duguay desaparece de vista social.
D.
Beamish sabia tudo.
O
paraíso só o é se não humano.
The
Dalles, Oregon. Setembro, 1984.
Surto
de salmonella, 751 intoxicados.
Foram
os Rajneeshees, claro.
Seita
tóxica, claro – como todas, claro.
James
O. Isaac, 2-10-1956 / 4-11-1978.
Charles
Mill Lake, Ohio.
Judy
Bruce, 2-11-1978. Ó Larry, sacana de merda.
Dois
mortos só mais de 20 anos depois vingados.
Arquivos
são por vezes remexidos, despertando não os mortos, mas, deles, algo que quer
viver ainda. Projectos que tiveram, agendas telefónicas cujos números não atendem
se chamados, diários adolescentes cuja caligrafia trai a solidão que é a essência
de cada existência, humana ou não. (Belynda Tiller, RIP, portanto.)
(Fonte:
episódios de Medical Detectives / Forensic Files, S7/E7, S7/E8, S10/E5,
S10/E6.)
III
Acabei
saindo hoje ao mundo de fora. O mapa chama-lhe Coimbra – eu chamo-lhe Pátria
Local.
Menos
gente. Demorei-me pouco. Por uma nota de cinco, comprei cinco livros no antiquário.
Tomei café numa esplanada deserta. Comprei tinta para a caneta preta (esta
mesmo).
Não
senti especial libertação. Na verdade, já confinar-me eu me confinava antes
desta gregária comédia viral-global.
Vi
algumas pessoas em situação de miséria. Mais do que pobreza, miséria. Vi &
ouvi, numa fila de atendimento-à-vez-&-só-com-máscara, uma mulher
antipática como a fome. Trovejava ela lugares-comuns sem miolo nem espelho. Ouviam-na
velhos que esperavam a vez para levantar a pensão de reforma. Impertinente,
desbocada, inútil mulher. Era daquelas que fatigam a democracia. Consegui alhear-me
dela, todavia. Chegou a minha vez, fui atendido por uma funcionária de bom
atavio cívico-profissional, desandei de assunto tratado para o próximo a
tratar. Tão cedo, não saio sozinho às ruas.
Uma
vez em casa, ingeri qualquer coisa sem história nem bibliografia. Fiz café, que
tomei de pé olhando da marquise o ocidente. Saudades da chuva. Impôs-se-me a
sesta, a que obedeci sem esforço nem contrariedade. Despertei para uma
realidade quieta. Vagueei, não abri um livro. Não projectei. Existi apenas, o
que não é assim tão pouco.
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