73.
DOIS ÓBITOS, UMA VILA
Coimbra, quinta-feira,
4 de Junho de 2020
Ontem,
4.ª-3, às cinco & cinco da madrugada, atirei pão migado para o telhado das
oito garagens do prédio, lá em baixo. À primeira-luz, tive direito a pardais, duas
pombas, duas rôlas – e um melro muito catita. O meu pão é de fina qualidade, os
voadores apreciam-no muito. O resto do dia não rezou grande nem pequena
história. Em ápice-fósforo, fez-se 5.ª – 4 do 6 do VinteVinte. É a tarde
vigorando já. Vi filmagens do 28 de Maio de 1939. Mocidade Portuguesa do nosso
fascismozito pobrete-alegrete. Ainda me calharam quase-quase dez anos dele.
Olha os fantochezitos de papelão: Carmona, Salazar, a juventude papagaio-castrense,
o senhor arcebispo de Mitilene. Deprimente.
(Por
falar em deprimente, duas novas necrológicas chegam-me pelo telefone: Mário
Torres, antigo futebolista da Académica das décadas de 50 & 60/XX, médico-ginecologista,
aos 89 anos, nascido em 1930; e, aos 64, o poeta Manuel Cintra, ontem
encontrado morto em sua casa, sita ao Bairro Alto, Lx. Morto & sozinho
redundam-se: deve ter reiterado a mais aguda solidão durante o fim-de-semana,
talvez.)
(Ainda
sobre o poeta Manuel Cintra. Há já quase trinta anos, anotei a lápis a compra
& a leitura de Do Lado de Dentro, livro que a Editorial Presença
publicara em 1981:
Casa
Rádio
Figueira
da Foz
3
de Janeiro de 1991
–
lido na mesma noite.
Reencontrei
a obra. Aos 26 & ½, sublinhei este fragmento das pp. 55/56:
“Queria
escrever. Escrever aquilo que não viesse de lado nenhum e surgisse, naquele
instante, da mão e do papel, e doía-lhe saber que não era possível, nunca sai
da mão nem do papel, nem sequer de nós próprios, vem do rasto dos outros, dos
outros papéis, das outras mãos, dos outros nós próprios.”
Manuel,
também tradutor & actor, nasceu em Março de 1956, filho do Professor Luís
Filipe Lindley Cintra & irmão do actor/encenador Luís Miguel Cintra.)
Vila
em confins aprazíveis: muita água, terra rica, fauna silvestre,
pequeno-comércio capaz. Conheço de ouvir ler. Carlos Melro (apelido mesmo, não alcunha)
preside à junta; Carolina Tavares preside ao minimercado; Eduardo Pardal
(apelido mesmo, não alcunha), talhante & peixeiro, poliglota portanto; Marília
Pavia, da casa dos móveis; Belmiro Sena, electrodomésticos & reparações domésticas;
Cília Magno, professora-primária; José Marta, pároco; Cinda Reis, taberneira;
Arnolfo Migalhas (apelido mesmo, não alcunha), taberneiro; Roderica Belo,
taberneira; Armando Nobre, da Pensão Vila Nobre; Lorette Dimas, chefe &
única funcionária dos CTT.
Nenhum
deles leu jamais Manuel Cintra, mas Lorette & Cília eram regulares do
consultório do doutor Mário Torres.
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