23/10/2020

VinteVinte - 85 (nem tudo) + 86 (completo)


Gentil Guedes
(foto Terras de Sicó)



85.

 

GENTIL

 

Coimbra, terça-feira, 23 de Junho de 2020

 

I

 

Esta manhã, ouço, um a um, homens dizendo o que pensam sobre determinadas obras levadas a cabo em determinado naco temporal. É muito interessante. Aprendo sem esforço. Como cada um fez, como então em grupo foi feito. Como não trabalho em grupo há muitos anos, é como se, abrigado em conforto seguro, visse chover ali fora.

As obras compreendem fluxos de água, sistematizações ornitológicas (e portanto ornitófilas, claro que sim), laboratórios fonéticos, ritmos geológicos, lances do foro arquitectónico, arte do esquiço-definitivo, panificação, medicina também, muita filarmonia atonal.

(Talvez o parágrafo imediatamente supra soe analítico-artificioso. Acho bem. Nada a opor. É o que compreendo do que tais obras compreendem & reservam. Não quero complicar – mas simplificar também não.)

 

II

 

E depois tens Francisco, nascido a um 12 de Dezembro. Ambos nascemos com mais de cinco quilogramas – mas a partilha, ou a afinidade, por aí fica. A vida dele foi revérbero onde a minha, glaucoma. Esperto & inteligente ele era: atributos que não são sinónimos, por vezes até bem pelo avesso. Já morreu, sim – mas ainda se fala dele como espécie de marco miliário. Ele merece-o bem. Não estou a diminuir-me mercê de falsa modéstia. Não é modéstia. Não é falsidade. Não é diminuição. É como era. Agora, é como foi. Ele era mais velho, morreu antes de mim, ordem natural, nada a opor. Sou hoje mais velho do que ele, assim é deveras. Sei mais por ele já nada poder aprender ou lembrar. A única maneira de ele viver, bem, é esta: Francisco, nascido a um 12 de Dezembro, ano antigo, antigo de mais para mudar de posição, soprando-lhe, um ramo de laranjeira, sequer um pé-de-rosa.

 

(...)


 

(IV)

 

(Ouço entretanto que morreu um Amigo pombalense, o gentil Gentil Figueira da Silva Neves, que conheci & com quem privei em bem melhores tempos da vida de nós ambos. Se me cabia apresentá-lo, eu gostava de fazê-lo assim:

“Guedes para os homens, Gentil para as senhoras.”

Lamento profundamente. É uma perda deveras lastimável. Sei, todavia, que conheceu a alegria.)




86.

 

EM RELATIVA PURIDADE

 

Coimbra, quarta-feira, 24 de Junho de 2020

 

 

Morrendo passamos ao não-ser pela segunda & derradeira vez.

Da não-concepção precedente ao nascimento à excepção:

essas sim me parecem as estremes pontas do segmento.

Morreu ontem Gentil, volta ao olvido sem luz nem treva.

A durante-vida semelha ser a única pista possível.

Da de Gentil, sei pouquíssimo, algum tacto é urgente.

A gente é gente um sopro, vela brevíssima, quási-fósforo.

É-nos dado nome, número também, pouco mais.

Somos depois domesticados, mesmo que sem casa fixa.

Penso estar aqui em verdade, mas nada (m)o garante.

 

A Família Peres era da Rua do Corpo de Deus.

Pai, mãe, dois rapazes – todos não-são já hoje.

Ser, foram; ora desapareceram, nevoeiro total.

Não é cinema, é pior, é a suposta realidade.

Almocei com eles na casa deles à Corpo de Deus.

Era o Inverno ligando 1984 a 1985, sei isso.

Mão-de-vaca com grão-de-bico, a senhora sabia.

Senti-me em casa, éramos vivos os cinco.

Um a um, deixaram de ser, adeus, nomes-números.

Vou secretariando a relativa puridade em névoa.

 

Mantenho os papéis em ordem pessoalizada.

São o meu dique à maneira do castor.

Guedes, Peres, gentis todos, nenhum por aqui-’í é.

Nem sombra (o)põem temperadamente à luz.

Os dias os não contam, as noites os não sonham.

Avaliados ao padrão, resultam a normalidade mesma.

Gente de trabalho, lar, alguma semeadura de amigos.

É certo: nenhuma medalha pelo 10-de-Junho.

Mas mesmo assim gente afim da demais comum.

Grei lusíada, dessa que é a farinha do pão do dia.

 

Já não assobio perifericamente nem faço que me distraio.

Alimento aves sem gaiola, isso sim, todos os dias.

Ando na literatura escorando oblíquos muros.

Cuido mais de passados do que de futuros.

Alfaiate, talho fatos à medida: números com nome.

Pedreiro, subo os tais muros, oblíquos livros.

Levo-me à janela, tenho vez, voz também.

Pontes atiram-me chamamentos de marinha orla.

Pinhais assombram refrigérios sufocos vencidos.

Ainda é bom seguir, prosseguir, perseguir até.

 

Cristiano com Edite, Gil com Carolina;

Gabriel com Mercedes, José com Paula;

Dário com Rosa, Geraldo com Gabriela;

Célio com Maria, António com Pierrette.

Ouros, espadas, copas, paus.

Baralhar de novo, cortar, tornar a dar.

Janine com Alfredo, Fátima com Diogo;

Fernanda com Victor, Aniana com Raul;

Eustácia com Amélio, Rita com Cristino;

Joaquina com Rui, Salvina com Berto.

 

A dado momento, saber que é dado cada momento

– e logo perdido, escoado, (a)tirado ao sentido.

Isso sim, sem talvez, como em 1999, vê.

E (não ou mas e) como em 1940, senti Vós – se ainda.

Todavia, até o lugar em campa há que ser merecido.

Morrer há-de ser vulgar, ordinário, democrático.

Viver é outra louça, segmentada embora.

Valem o mesmo espernear & contemporizar.

A humana faina é de tostão – mas sempre é dinheiro.

Peres & Guedes comigo em tal concordaram sempre.


 

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Canzoada Assaltante