85.
GENTIL
Coimbra, terça-feira,
23 de Junho de 2020
I
Esta
manhã, ouço, um a um, homens dizendo o que pensam sobre determinadas obras
levadas a cabo em determinado naco temporal. É muito interessante. Aprendo sem
esforço. Como cada um fez, como então em grupo foi feito. Como não trabalho em
grupo há muitos anos, é como se, abrigado em conforto seguro, visse chover ali
fora.
As
obras compreendem fluxos de água, sistematizações ornitológicas (e portanto
ornitófilas, claro que sim), laboratórios fonéticos, ritmos geológicos, lances
do foro arquitectónico, arte do esquiço-definitivo, panificação, medicina
também, muita filarmonia atonal.
(Talvez
o parágrafo imediatamente supra soe analítico-artificioso. Acho bem. Nada a
opor. É o que compreendo do que tais obras compreendem & reservam. Não quero
complicar – mas simplificar também não.)
II
E
depois tens Francisco, nascido a um 12 de Dezembro. Ambos nascemos com mais de
cinco quilogramas – mas a partilha, ou a afinidade, por aí fica. A vida dele
foi revérbero onde a minha, glaucoma. Esperto & inteligente ele era:
atributos que não são sinónimos, por vezes até bem pelo avesso. Já morreu, sim –
mas ainda se fala dele como espécie de marco miliário. Ele merece-o bem. Não estou
a diminuir-me mercê de falsa modéstia. Não é modéstia. Não é falsidade. Não é diminuição.
É como era. Agora, é como foi. Ele era mais velho, morreu antes de mim, ordem
natural, nada a opor. Sou hoje mais velho do que ele, assim é deveras. Sei mais
por ele já nada poder aprender ou lembrar. A única maneira de ele viver, bem, é
esta: Francisco, nascido a um 12 de Dezembro, ano antigo, antigo de mais para
mudar de posição, soprando-lhe, um ramo de laranjeira, sequer um pé-de-rosa.
(...)
(IV)
(Ouço
entretanto que morreu um Amigo pombalense, o gentil Gentil Figueira da Silva
Neves, que conheci & com quem privei em bem melhores tempos da vida de nós
ambos. Se me cabia apresentá-lo, eu gostava de fazê-lo assim:
“Guedes
para os homens, Gentil para as senhoras.”
Lamento
profundamente. É uma perda deveras lastimável. Sei, todavia, que conheceu a alegria.)
86.
EM RELATIVA PURIDADE
Coimbra, quarta-feira,
24 de Junho de 2020
Morrendo
passamos ao não-ser pela segunda & derradeira vez.
Da
não-concepção precedente ao nascimento à excepção:
essas
sim me parecem as estremes pontas do segmento.
Morreu
ontem Gentil, volta ao olvido sem luz nem treva.
A
durante-vida semelha ser a única pista possível.
Da
de Gentil, sei pouquíssimo, algum tacto é urgente.
A
gente é gente um sopro, vela brevíssima, quási-fósforo.
É-nos
dado nome, número também, pouco mais.
Somos
depois domesticados, mesmo que sem casa fixa.
Penso
estar aqui em verdade, mas nada (m)o garante.
A
Família Peres era da Rua do Corpo de Deus.
Pai,
mãe, dois rapazes – todos não-são já hoje.
Ser,
foram; ora desapareceram, nevoeiro total.
Não
é cinema, é pior, é a suposta realidade.
Almocei
com eles na casa deles à Corpo de Deus.
Era
o Inverno ligando 1984 a 1985, sei isso.
Mão-de-vaca
com grão-de-bico, a senhora sabia.
Senti-me
em casa, éramos vivos os cinco.
Um
a um, deixaram de ser, adeus, nomes-números.
Vou
secretariando a relativa puridade em névoa.
Mantenho
os papéis em ordem pessoalizada.
São
o meu dique à maneira do castor.
Guedes,
Peres, gentis todos, nenhum por aqui-’í é.
Nem
sombra (o)põem temperadamente à luz.
Os
dias os não contam, as noites os não sonham.
Avaliados
ao padrão, resultam a normalidade mesma.
Gente
de trabalho, lar, alguma semeadura de amigos.
É
certo: nenhuma medalha pelo 10-de-Junho.
Mas
mesmo assim gente afim da demais comum.
Grei
lusíada, dessa que é a farinha do pão do dia.
Já
não assobio perifericamente nem faço que me distraio.
Alimento
aves sem gaiola, isso sim, todos os dias.
Ando
na literatura escorando oblíquos muros.
Cuido
mais de passados do que de futuros.
Alfaiate,
talho fatos à medida: números com nome.
Pedreiro,
subo os tais muros, oblíquos livros.
Levo-me
à janela, tenho vez, voz também.
Pontes
atiram-me chamamentos de marinha orla.
Pinhais
assombram refrigérios sufocos vencidos.
Ainda
é bom seguir, prosseguir, perseguir até.
Cristiano
com Edite, Gil com Carolina;
Gabriel
com Mercedes, José com Paula;
Dário
com Rosa, Geraldo com Gabriela;
Célio
com Maria, António com Pierrette.
Ouros,
espadas, copas, paus.
Baralhar
de novo, cortar, tornar a dar.
Janine
com Alfredo, Fátima com Diogo;
Fernanda
com Victor, Aniana com Raul;
Eustácia
com Amélio, Rita com Cristino;
Joaquina
com Rui, Salvina com Berto.
A
dado momento, saber que é dado cada momento
–
e logo perdido, escoado, (a)tirado ao sentido.
Isso
sim, sem talvez, como em 1999, vê.
E
(não ou mas e) como em 1940, senti Vós – se ainda.
Todavia,
até o lugar em campa há que ser merecido.
Morrer
há-de ser vulgar, ordinário, democrático.
Viver
é outra louça, segmentada embora.
Valem
o mesmo espernear & contemporizar.
A
humana faina é de tostão – mas sempre é dinheiro.
Peres
& Guedes comigo em tal concordaram sempre.
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