In the Patio III, by Georgia O’Keeffe, 1948.
© Georgia O’Keeffe Museum.
81.
TRÊS DESERTOS
Coimbra,
quarta-feira, 17 de Junho de 2020
I
Sonhei
– era uma casa deserta. Não era pela falta de pessoas nela, mas de livros.
Altos desertos verticais, aquelas paredes. Ampla derivação no nada. Senti a
ausência de sentido, a indiferença de estar ou não estar, sendo o ser outra
coisa que ali não cabia. Sim, foi angustiante. Depois, dormi ainda uma hora
mais. Convalesci nessa hora, pois despertei refrescado & pronto. Todavia,
eram já sete, o que estranhei. Fui logo dar de comer à minha passarada matinal.
Já me esperavam, os ladinos pardais, o absorto melro. Valem-me como livros,
eles todos.
II
Paulo,
filho de Artur & Teresa, marido de Joana. Deu-nos uma boa história, um
exemplar percurso. Isto é verdade. Virou-se sempre para o lado de cima, como
manda o cartão que traz frigorífico dentro.
Inês
Castor, directora do sanatório, hoje com 93 anos, hospedou o pai de Paulo,
Artur Pinho. Foi isto há largas, fundas, esquecidas décadas. Sempre foram
quatro anos & meio de internamento sem interrupção. Ao cabo deles, sobreviveu.
Artur
conservou o diário que urdiu nessa época ensimesmada da sua vida. Paulo leu-o
quando já a voz do pai era póstuma. Fez uma sinopse do manuscrito à mulher. Joana
meditou muito por causa de tanta subterraneidade fundamentar cada vida.
Teresa
Pinho (Claro, quando solteira) não restou viúva muito tempo. Dois anos menos
duas semanas demorou até a matricularem no jazigo de família. Inês levou flores
a ambos enquanto pôde. E fê-lo sempre com aquele sorriso giocondo, por
assim dizer, que só a leitura de certo diário sanatorial poderia deslindar.
Ora,
eu não fiz essa leitura jamais – e não me parece que Paulo esteja virado para o
lado de me a proporcionar. O lado para que se vira não é este aqui em baixo. Frigorífica
é sua obstinação.
A
boa história que nos deixou, o exemplar percurso que nos legou – configuraram silêncio
quando é de estar calado & discrição quando é de manter, dos mortos, o
bom-nome. Mesmo que etc.
Águas
passadas, vidas idem. Nihil obstat sed imprimatur non potest.
III
Não
revelaram o nome dele.
Filmaram-no
respondendo a perguntas.
Era
um interrogatório médico.
Questões
clinicamente orientadas.
Mostrou
um sofrimento adensado pela contenção.
Sozinho
na instituição, sem visitas de família.
Família
é quem aparece, diz ele.
Diz
ele: Por isso, família nenhuma.
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