71.
EMBORA RECORDAR POR ESCRITO
NEM POR ISSO DESMEREÇA ESQUECIMENTO
Coimbra, segunda-feira,
1 de Junho de 2020
(...)
VIII
Recordo
Pardo
& parado, o céu baixo como um insulto imerecido; a cam(p)a de Antónia rangendo
no escuro do quarto ao lado, quando no meu já a humidade da claridade se
imiscuíra como uma rata cega. Era a sufocação de um Maio que já então não voltaria
a ser-nos mau.
Sim.
Sim,
recordo
Tempos-anos em que anoitecia desde manhã, que tarde nascia. O dia, esse vinha sem
diferença, essa que se pensa para melhor – como se, um dia, novidade fosse
melhoria.
E
de ter pensado que
Se
nunca a compreendi, foi por não ter nascido para compreender mas para durar
quanto tempo pudesse, nem Deus sabe para quê, não se compreende, Celeste, mas mais
recordo que
Uma
vez quis escrever destino e quando fui ler tinha posto um a entre
o s & o t – e é que deixei ficar assim por me parecer que
acertara, mesmo a trouxe-mouxe, na mouche.
IX
O
vento-matino vem levado das laranjeiras, é doce respirá-lo quando ele toma o
rosto à pessoa, da velha abadia o brônzeo repicar convoca das almas a
transumância êxul.
Gente
das mercadorias abastece desde as quatro o mercado-mor, homens fortes sob sacos
robustos cambaleiam, mulheres correm de águas lixiviadas as lájeas cuja memória
diz passos de gente que já passou.
Afora,
muda na esquadra o turno de polícias. Às sete, já as casas-de-pasto não medem
mãos, servindo grandes pães prenhes de toucinho, carne guisada, iscas, sardinha
frita, presunto corado à sombra do fumo.
Janela
em mansarda quase muito alta: toda a noite vingou nela o fanal do estudo. Alguém
esteve adindo ao prazer da leitura o proveito da retenção, a fortuna da
aprendizagem, a viagem ao imo da cabeça de outros que, antes, o mesmo fizeram
por o inverno, perdão, o inverso.
Bonita
matina a do Junho velho à nascença. Velho – porque não deste de VinteVinte hoje
iniciado, outro sim, outrossim Junho mas de perdido ano.
Eu
morava então no sopé de certo monte suburbano. Cheirava docemente a bolachas
novas pela tardinha, perfume fabril emanado por centenas de formigas de bata
verde. Já não.
A
manhã cresce com a sapiência involuntária dos frutos. Sol & nublação ’inda
convivem, surda guerra abafadiça. Quê? Não, não saí hoje de casa, afinal sempre
não saí. Sim, hei outros planos. Assim venham outros dias.
(“Passo
a vida a reduzir ao perto de que fujo o longe que me causa.”
V.
Nemésio, Jornal do Observador, p. 402.)
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