65.
NACOS DISPONÍVEIS
Coimbra, terça-feira,
26 de Maio de 2020
I
Álea
de casas-gaiolas em série pré-fabricada. Cinzentas, estriadas a rodapé azul
aqui, verde acolá, ali grená. Gente algo mais tristonha do que a média em
subúrbios afins. Desvanecida a utopia (ou: a falácia) patriótico-imperial, há que
suportar agora os despojos, id est, os cacos sórdidos do Pretérito.
II
Entretém-se
a dem’hora em obliteração. Ou: comendo o naco disponível, deixando arrefecer a
sopa fervida à cautela, migando uma pouca de pão no fundo da malga. Sévigné,
Madame de. Notação de toponímia interior, dessa tão facilmente abordável quão
falseável.
III
O
Exterior não atrai. O ar-livre é fornalha. Insensato sair sem ser por momentos
apenas, à hora-morta d’ir-ao-lixo. Recebi calçado de marca de muito boa
qualidade, ideal para caminhadas mais longas. Experimentei, sirvo-lhe. Estou mais
rico no concernente à pedestre materialidade do mund’aparente.
IV
Uma
vez, vi um gajito que era médico da Caixa com pretensões político-autárquicas. Era
caça-fraca, como se diz na freguesia do Louriçal quando o objecto humano
merece tal vilipêndio, ali aliás bem gravoso. Lembro-me das mãos dele: muito
correctas, limpas, de unhas geometricamente cuidadas. A minha Mãe levou-me a
consultas com ele, ele fez-nos talvez duas visitas domiciliárias, quando o médico
vinha de táxi correr a rua operária. Era tão-só um coimbrinha – e de-fora,
ainda por cima. Já deve ter morrido, não sei. Recordo-o aqui por ter aparecido
no televisor um fulano que era a estampilha-chapada dele. E as mesmas unhas de
meia-lua clara-rosa em mãos lavadas minuciosa, escrupulosamente. Só que a
emissão era em directo – e o tal médico teria hoje, em diferido, mais de
oitentas. Este da TV não passava dos 45, 46. A morte é repetir o singular, é vulgarizá-lo.
Nascer é que é trágico – o resto é medir a febre aos pobres, receitar-lhes
supositórios para que a vida continue a enrabá-los como é de lei, perder eleições
concelhias, reformar-se menos mal, ser esquecido, chegar em paz a sítio nenhum.
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