13/10/2020

VinteVinte - 78 (tudo)




78.

 

BEM-IDA ROSA

 

Coimbra, sábado, 13 de Junho de 2020

 

 

I

 

Em carta à filha (Madame de Grignan), datada de Paris, sexta-feira, 5 de Fevereiro de 1672, Madame de Sévigné, que nesse mesmo dia completava 46 anos de idade, assentava:

 

“(…) rien n’est moins utile que les douleurs d’une chose sur laquelle on n’a plus aucun pouvoir (…)”

 

II

 

Levantei-me hoje mais cedo que de costume. Afinal, hoje é dia-d’anos: 132º aniversário do menino Fernando António Nogueira Pessoa. Ainda não davam as quatro quando cheguei à cozinha. Escoltaram-me lá o Menino Gato & a Senhora de Sévigné. Entre as cinco & ½ e as seis, atirei farto pão & trinca-de-arroz aos telhados (baixos, da minha perspectiva de andar de prédio). Espero as aves. Às oito para as seis, a gala começou: veio o melro, grande macho de luzidio negrume & boca-d’ouro, belo exemplar crisóstomo. Depois, um rabo-de-príncipe. De imediato, dois soldados-da-fortuna, id est – pardais. A fortuna simples de tudo isto tem sido consolação minha. Plano simples também: rasurar-me a barba, duchar-me a carcaça, sair limpo & lavado à rua, tomar café fora, comprar livros no antiquário, ver um pouco da repetida novidade do mundo.

 

III

 

Cidade.

Como autoprometido, ei-la. Em (muito) moço, era minha alegria segura (v)ir à Cidade pela Manhã-do-Sábado. Ainda é – mas é que envelheci muito, pá. Ainda assim, eis-me-la.

Duas robustas mulheres africanas. Falam alto. Uma das duas pode que seja surda. Garridas de escarlate. De chinelas branquíssimas, uma. De mocassins verdes, a outra. Sacos vazios: vão à praça, ao que percebi.

Duas frágeis velhotas brancas como neve dada à transparência. Viúvas ambas, claro. De ourives viúva, a mais pequenita. De merceeiro-carvoeiro, a outra. Ambas testemunham Jeová, por aí andam de salvação na mão em formato-folheto luso-brasileiro.

Um homem sozinho com dois sacos plásticos azul-ferrete. Foi ao pão, às batatas & ao vinho. Espera o 4 para os Olivais. Calado, seco, à espera. Tem aquele ar de anos-perdidos estampado nas mãos – mas não usa óculos, o ladrão. Sobrevivente, manhoso, enxuto, esperando, calado.

De resto, nota-se o esvaziamento. O comércio sofre mais que de costume. O antigo futebolista campeão mundial Jorge Valdano escreve (bem, como é timbre dos argentinos):

 

“Agora o futebol chega para facilitar o tão ansiado regresso da normalidade que, por certo, nunca se pareceu tanto com a felicidade.” (A Bola do dia 13-6-2020.)

 

Tirando o futebol – que já me diz pouquíssimo, é certo: o normal, coisa agora anacrónica, parece-se muito com o que quer tenha havido de feliz na vida de um-ao-pé-de-todos-e-todos-por-nenhum.

De resto, noto a obstinada insensatez da (minha) literatura – porquê?, porque escrever neste País é como fazer guarda-chuvas em Cabo Verde. Pronto.

Comprei livros no antiquário-ferro-velho: Truman Capote, Fialho de Almeida, Ruth Rendell, Curzio Malaparte & Walter Scott. Não saí infeliz da loja. Depois foi a-seguir: havendo apetite, fui ao Mijacão bifan’avinhar-me. Os cinco livros custaram-me cinco euros; a bifana & o tinto, dois & quarenta. Nenhum dos negócios me arruinou. Talvez, bem antes pelo contrário, me hajam feito prosperar qualquer coisita. Tive pena, apenas, de não ter mais largueza de moedas. Um livro / um euro é relação excelentíssima. Voltarei, podendo & estando vivo.

É já madura a mantra sabatina. Li o jornal local. Uma senhora principiava a secção da Necrologia: óbito, aos 107 anos, de uma residente em Santa Clara, Benvinda Rosa Correia Félix, viúva que era dos senhores José Marques de Carvalho, primeiro, e de António Félix, depois. Ou vice-versa. Madura como a corrente manhã. Fez-se-lhe agora tarde, ’inda a noite não veio.

Agora – escrevi. É anacronismo à nascença – se leitura vier a merecer. Este Agora – 11h19m é fósforo. Lume soprado. Cinza provinda. Rien-de-rien de nothing-at-all. Mas adiante:

 

IV

 

Rosto sorridente

Em o autocarro

De infante gente

Rosto muito claro

 

Bonita infância

Desapercebida

Da rápida vida

Que se faz distância.

 

Criança bonita

Flama d’ouro puro

É toda futuro

Q’inda não transita

 

Memorei agora

Antes memorei

Do futuro embora

Nada já não sei.


 

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Canzoada Assaltante