78.
BEM-IDA ROSA
Coimbra, sábado, 13
de Junho de 2020
I
Em
carta à filha (Madame de Grignan), datada de Paris, sexta-feira, 5 de Fevereiro
de 1672, Madame de Sévigné, que nesse mesmo dia completava 46 anos de idade,
assentava:
“(…)
rien n’est moins utile que les douleurs d’une chose sur laquelle on n’a plus
aucun pouvoir (…)”
II
Levantei-me
hoje mais cedo que de costume. Afinal, hoje é dia-d’anos: 132º aniversário do
menino Fernando António Nogueira Pessoa. Ainda não davam as quatro quando
cheguei à cozinha. Escoltaram-me lá o Menino Gato & a Senhora de Sévigné. Entre
as cinco & ½ e as seis, atirei farto pão & trinca-de-arroz aos telhados
(baixos, da minha perspectiva de andar de prédio). Espero as aves. Às oito para
as seis, a gala começou: veio o melro, grande macho de luzidio negrume &
boca-d’ouro, belo exemplar crisóstomo. Depois, um rabo-de-príncipe. De imediato,
dois soldados-da-fortuna, id est – pardais. A fortuna simples de tudo
isto tem sido consolação minha. Plano simples também: rasurar-me a barba,
duchar-me a carcaça, sair limpo & lavado à rua, tomar café fora, comprar
livros no antiquário, ver um pouco da repetida novidade do mundo.
III
Cidade.
Como
autoprometido, ei-la. Em (muito) moço, era minha alegria segura (v)ir à Cidade
pela Manhã-do-Sábado. Ainda é – mas é que envelheci muito, pá. Ainda assim,
eis-me-la.
Duas
robustas mulheres africanas. Falam alto. Uma das duas pode que seja surda. Garridas
de escarlate. De chinelas branquíssimas, uma. De mocassins verdes, a outra. Sacos
vazios: vão à praça, ao que percebi.
Duas
frágeis velhotas brancas como neve dada à transparência. Viúvas ambas, claro. De
ourives viúva, a mais pequenita. De merceeiro-carvoeiro, a outra. Ambas testemunham
Jeová, por aí andam de salvação na mão em formato-folheto luso-brasileiro.
Um
homem sozinho com dois sacos plásticos azul-ferrete. Foi ao pão, às batatas
& ao vinho. Espera o 4 para os Olivais. Calado, seco, à espera. Tem aquele
ar de anos-perdidos estampado nas mãos – mas não usa óculos, o ladrão. Sobrevivente,
manhoso, enxuto, esperando, calado.
De
resto, nota-se o esvaziamento. O comércio sofre mais que de costume. O antigo
futebolista campeão mundial Jorge Valdano escreve (bem, como é timbre dos
argentinos):
“Agora
o futebol chega para facilitar o tão ansiado regresso da normalidade que, por
certo, nunca se pareceu tanto com a felicidade.” (A Bola do dia 13-6-2020.)
Tirando
o futebol – que já me diz pouquíssimo, é certo: o normal, coisa agora
anacrónica, parece-se muito com o que quer tenha havido de feliz na vida
de um-ao-pé-de-todos-e-todos-por-nenhum.
De
resto, noto a obstinada insensatez da (minha) literatura – porquê?, porque
escrever neste País é como fazer guarda-chuvas em Cabo Verde. Pronto.
Comprei
livros no antiquário-ferro-velho: Truman Capote, Fialho de Almeida, Ruth
Rendell, Curzio Malaparte & Walter Scott. Não saí infeliz da loja. Depois foi
a-seguir: havendo apetite, fui ao Mijacão bifan’avinhar-me. Os cinco livros
custaram-me cinco euros; a bifana & o tinto, dois & quarenta. Nenhum dos
negócios me arruinou. Talvez, bem antes pelo contrário, me hajam feito
prosperar qualquer coisita. Tive pena, apenas, de não ter mais largueza de
moedas. Um livro / um euro é relação excelentíssima. Voltarei, podendo &
estando vivo.
É
já madura a mantra sabatina. Li o jornal local. Uma senhora principiava a secção
da Necrologia: óbito, aos 107 anos, de uma residente em Santa Clara,
Benvinda Rosa Correia Félix, viúva que era dos senhores José Marques de
Carvalho, primeiro, e de António Félix, depois. Ou vice-versa. Madura como a
corrente manhã. Fez-se-lhe agora tarde, ’inda a noite não veio.
Agora
– escrevi. É anacronismo à
nascença – se leitura vier a merecer. Este Agora – 11h19m é fósforo. Lume soprado.
Cinza provinda. Rien-de-rien de nothing-at-all. Mas adiante:
IV
Rosto
sorridente
Em
o autocarro
De
infante gente
Rosto
muito claro
Bonita
infância
Desapercebida
Da
rápida vida
Que
se faz distância.
Criança
bonita
Flama
d’ouro puro
É
toda futuro
Q’inda
não transita
Memorei
agora
Antes
memorei
Do
futuro embora
Nada
já não sei.
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