01/10/2020

VinteVinte - 63 (tudo)

 

Die Linkshändige Frau – © Peter Handke

                                                 

 




63.

 

23 por 34

 

Coimbra, sábado, 23 de Maio de 2020

 

I

 

Vinte-&-Três-de-Maio. O Jorge, claro. Trinta-&-Quatro-Anos, dia a dia, noite a noite – não respira, nenhum problema para ele. Voltei a referir Bach, ontem, o ele estar vivo na Obra. Sim, é verdade, Bach r-existe. O Jorge vive pela filha & pela neta. Pouco vi(ve)u a primeira, não pôde v(iv)er a segunda. Duas meninas lindíssimas, aí ao sol, à flor da terra. Nenhum problema.

 

II

 

Recordo duas noites estivais.

Uma, no ano do Mundial da Argentina, então sob a criminosa ditadura de Videla & seus mastins.

Outra, de seis anos depois, corria Julho.                                              

Muito quentes, ambas. Boa recordação física. Saúde, muita. Catorze anos, na primeira. Vinte, na segunda. Ninguém directo me morrera.

Detesto o Verão, naturalmente, há muitos anos – são muitos anos, 34?

 

III

 

O resto é uma brincadeira. Não vivo mais 34. Se vivesse mais 34, chegaria aos noventa – o que é impensável. Impensável & imperdoável. Tirando o meu paterTio Serafim, a minha linhagem não é de homens que durem muito. Ou demasiado: não é de homens que durem de mais. As mulheres têm sido mais rijas – ainda bem: tenho duas Filhas, cujos centenários serão seguramente festejados em 2093 & 2100.

O resto é mesmo uma brincadeira.

 

IV

 

Em uma dimensão alternativa, a textura do ar, por causa do calor excessivo, condenava-os a respirar como se através de alcatifas sucessivas. A existência, mesmo ao ar-livre, parecia-lhes um armazém de madeira velha à espera de um único fósforo riscado em verniz. Só entre a meia-noite & as seis da manhã, mesmo na praia, sobreviviam. Das igrejas, manava o suor apodrecido dos primeiros mártires. Só nas caves profundas se tornava possível acreditar na moderação outonal do futuro.

Não há qualquer obstáculo a relatar isto: morreram de morte oficialmente natural há muitos anos. Edmundo Gil Ardina Darque, advogado ilustre, inteligente, dedicado, leal; e Rosalinda Maria Temudo Vala, ajudante-de-cozinha serena, inteligente, dedicada, leal. A história deles não (co)meteu cama. Conheceram-se quando ele já navegava os limbos da sua década septuagenária. Ela tinha 34 anos feitos no Fevereiro anterior. Ele tirou-a de cozinhas, pagou-lhe a formação em Química Laboratorial. Ela remunerou-o com desvelos de filha natural.

Em noites daqueles verões perpétuos, ele sentava-se no alpendre sob a janela da sala-de-estar, onde empoleirara a ventoinha eléctrica virada para fora. Lá dentro, ela preparava um jarro de limonada pedrejada de gelo. Na bandeja, vinham também barrinhas de chocolate-culinário, daquele mais amargo & mais negro & mais puro. E um frasco de cristal com conhaque da marca Churchill. Conversavam até a Lua bocejar. Às 5h13m, o galo gritava luz. Recolhiam-se então. Eles r-existiam. Talvez não tanto quanto Johann Sebastian – mas quase.

Edmundo finou-se em Maio, a dois dias de completar noventa anos. Rosalinda herdou o tudo dele, que alguma coisa era, arrendou a vivenda & o escritório, montou uma casa-de-pasto que geriu a partir da cozinha até um enfarte a fulminar sem dor aos setenta & seis anos, feitos havia dois dias.

 

V

 

O envelhecimento & a doença terminal vergaram-no a um catolicismo interesseiro, covarde & obsessionado de últimos-dias. O charmoso dandy, o taful literato – finou-se como toda a gente se fina, fina ou grossa seja ela. Foi muito bom divulgador, era deveras cultos, escrevia bem o seu ensaio, o seu romance, o seu verso. Não se deu mal em nenhum dos regimes pré- & pós-25. Tanto se lhe pode chamar David como outro nome, agora já tanto (des)faz. Viagem que já não importa se sim ou não Secreta, se Feliz ou não tal Amor.

 

(VI)

 

(Ainda penso em Sampaio Bruno lido por Joel Serrão & memoriado por Raul Brandão.)

 

VII

 

Tirante as incursões nocturnas ao contentor do lixo, não saio de casa nem destas & doutras páginas. A semana que entra, saio talvez uma manhã. Poucos papéis a tratar, algumas moedas. Renovar a mensalidade do passe do autocarro. Aproveitar algo do mundo externo, dito real. Falar pouco, quase nada. Escrever alguma coisa. Tomar café de alheia cafeteira. Parece-me plano simples, exequível, sensato. Talvez dê para comprar cargas de tinta-permanente. De lápis, estou ricamente munido. De afiadeiras, idem. Uma saltada aos livros velhos por uma moeda cada? Yes, peut-être, quiçá. Para já, esta janela dando (a)o campo.

 

VIII

 

Nada somos, pouco valemos, tudo nos é devido.

 

IX

 

Imagem de massa multitudinária arrebanhada, cordata, amestrada, rafada, cotiada, puída, domesticada, anestesiada, alienada, nada, decapitada. Homiliada. Humilhada. Ignara & avara de sua acefalia. Transumante amante do cálix, da píxide & varada a báculo no rijo lombo bestial. Alfaias sacratíssimas que à pusilanimidade de Constantino devemos, filho-da-puta. Paramento, lavanda & gomil. Geral metalo-mineralogia: fero ferro, cálido calhau.

Mas Bach.

 

X

 

Entrada já madura a noite, o relento fresco não faz da vida a pior coisa que nos pode acontecer – sim, é a minha altura de levar o lixo ao lixo, aproveito o fresco, demoro-me pouco mas agradeço o instante. Em hora & Maio, perdão, em hora & meia o 23-de-Maio-Jorge terá passado, será Domingo.

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Canzoada Assaltante