24/10/2020

VinteVinte - 87 (tudo)




87.

 

DOUTROS & DO GUARDADOR DE NEVÕES

 

Coimbra, quinta-feira, 25 de Junho de 2020

 

I

 

Um lugar capaz de aceitar a pessoa da laranjeira.

Duas décadas ainda esse pouco, repousar depois.

À tardinha, esperar no pontão o pastor, o cão, o rebanho.

Acompanhá-los, pagar a bebida ao homem, conversar.

Trazer toucinho, azeite, broa nova, feijão, verdes.

Esse lugar capaz de aceitar a casa da laranjeira.

 

Na casa do povo, o cubículo dos correios, breve cave.

Receber lá o vale, deixar algum na previdência.

Trazer os jornais da quinzena, esmolar o convento.

Vender as laranjas ao preço da chuva, tornar ao lugar.

Sonhar com cavalos, nem todos vivos, acordar no escuro.

Reacender a lareira, mirar da janela a laranjeira.

 

As primeiras aves inaugurando o dilúculo.

A caixa que foi de sapatos ’inda meia de cartas.

Retirar dela uma ao acaso de outro Verão.

Oferecê-la à lenha ardente, acender o cigarro.

Pentear o gato, escovar o cão, esperar a neve.

Ainda não ser esta semana a do telefonema. Mas laranjeira.

 

II

 

Extensões aplainadas pelo longo uso do vento.

Como rosas se abrem os pulmões ao ar total.

O cedro-gigante trepa a hora rumorosa.

É bom ninguém com sílabas haver por cá.

Isto é tudo livro aberto, esquece-se escrevendo.

 

Sabe-se já que na casa amarela velório em breve.

Vicente, o velho notário, dá-se as últimas.

A neta mais querida herda os álbuns do velho.

A imobiliária vende o terreno, reparte-se o bolo.

Tudo tão igual, ’ind’assim capaz de verso.

 

Diana, minha netinha, filha diferida do meu coração.

O álbum negro guarda os nevões de meus pais vivos.

O azul, fontanários & pelourinhos, pedra tudo.

O róseo, quantas crianças pude subir à luz.

Diana-nana-aninhas, do meu coração nevada.

 

III

 

Teve de exilar-se, país adentro embora, pelo salário.

Suportou mais de quarenta anos, não é brincadeira.

Os anos perdidos não voltam – e todos o são.

Resta-lhe agora constar destes versos – nada mais.

 

António Nogueira Reis Cavaleiro, dele V. falo.

Agora que a casa é paga, vê-se crónico renal.

Um ano ou quatro, mais é difícil.

Folheia as horas em seu particular outono.

 

Restou ninguém, não é essa a questão.

Nenhuma questão afinal, nenhuma questão.

Bolachas de aveia na lata verde-grená-castanha.

E ao poente o amarelo-torrado da minha vida.

 

IV

 

Parecia estralejar de fritura, primeiro.

Depois, semelhava entusiasmo de crianças aplaudindo.

E era afinal chilreando a passarada exuberante.

 

Máximas minuciosas coisitas assim m’exultam.

Digo: me exaltam, fazem bem, dão rumo.

Digo: e nisto não minto, que o sinto & assim é.

 

Agora, esta torreira insensata, africana, bastarda.

Doentio verão epidémico, sobrepovoado, estéril.

Daninho, maninho, sem aves nem porvir.

 

V

 

Fala-te de barcos adensando a noite, de tão escuros.

E de viagens que por escrito ainda são ir.

 

Nada lhe respondas em susto pânico, ele é morto.

Os pequenos são infelizes. Os grandes, também.

 

Ó silenciosas senhoras de tule & bule!

Ó guardados móveis, mães de todo o pó!

 

VI

 

Lugares crio sob que apago lugares, tróias.

 

Convicto me apresento, ocupante, ovante.

 

Íntima, ínfima, iníqua não, vitória. 


 

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Canzoada Assaltante