05/10/2020

VinteVinte - 68 (tudo menos o VI, por enquanto)


 

68.

 

MESM’ASSIM

 

Coimbra, sexta-feira, 29 de Maio de 2020

 

 

         I. SONETO DE RIGOR ANTICALOR

 

O calor roubou-me o sono nocturno.

Consigo adormecer só quando alvorece.

Calor primitivo, que não arrefece

& me torna pesado, danado, soturno.

 

Dormi-perdi toda a manhã, pecado

que me não perdoo (nem p’ra lá caminho).

Ao menos, não deixo o Gatito sozinho,

brinco às tantas com ele, fica consolado.

 

Segue-se o deserto estiolado, vil, inexorável

do Verão de onze meses ao ano, imperdoável.

Só por escrito hei neve & gelo & árctico,

 

só por escrito refresco ar condicionável,

só por escrito viver se volve suportável

– isto é de rigor p’ra mim matemático.

 

II. IMAGINAGUAÇÃO – soneto sem os tercetos

 

Na mão esquerda de alguém

pôr dois pedaços de hidrogénio;

depois, na mão dextra também

um pedaço de oxigénio.

 

Pedir-lhe então que imagine, livre

– se do produto da imaginação

água correr, então esse alguém vive

da poesia a mais solene condição.

 

III

 

Fantochada dos gurus, dos CEO, dos egipt’ovniólogos, dos chnic’americanóides, dos russ’ucranianos, dos nazi’sionistas, do crist’arabismo, dos católic’aucasianos, de sermos todos, como espécie, de uma desordem autodesclassificada.

Imagem do deserto: qualquer cidade.

Pai do deserto: Verão-Fornalha-Global.

Apocalipse: é individual, ferrete na testa à nascença de cada um(a).

Rebanhos bípedes ordeiramente ordenhados nos multicoloridos currais hipercomerciais.

A ideia de Escola tornada distorção ab ovo.

A distorção da Justiça enquanto Coerência.

A Saúde Pública como Produto Privatizável.

O Fomento da Guerra Local irmanado à Caridade Instantânea da ONG-mais-perto-de-si.

A Fábrica de Armamento no Prédio 1 Bloco A & Laboratórios de Pró-Depressivos no idem idem idem B.

O Analfabetismo Funcional & o Analfabeto Funcionário.

Jesus Cristo & Steve Jobs.

Maomé & a Montanha Parida pela Rata.

Jeová & Al Capone subornando testemunhas.

A cloaca crematória de rajás & aiatolas.

Aquilo da “medicina” tradicional em Vilar de Perdizes.

Josemaría Escrivá & o Generalíssimo Cancro, perdão, Franco.

A Opus Dei-Portugal mais à base de minis & tremoços.

Bocejos, fadiga, fazer café novo, forte, reduzir um bocadinho o número/dia de cigarros, sair talvez quando for Segunda-Feira-1-de-Junho-do-VinteVinte.

 

IV

 

A subsistência implica não-raro a subexistência. A ovelha sabe-o sem saber que o sabe. O lobo, sábio, sabe-o. É isto & assim mesmo.

 

Para subsistir, fazer como os demais.

Mas – não dando nas vistas de mais.

 

Como quando o Maigret/Simenon vai aos Estados Unidos e vê num sítio a máquina-de-embriagar ao lado da máquina-de-desembriagar. Bourbon & coca-cola. Vodka & pepsi-cola. Etc.

 

Resolvida (eventualmente) a questão da subsistência, resta o problema, aliás ingente, de retirar o sub à existência. Conseguiu-o, com tanto dinheiro de royalties, Simenon? Li as Mémoires Intimes dele: concluí que não, não conseguiu. Subsistiu, subexistiu. Aquilo do suicídio da filha. Existir, só existe agora – no futuro que o ex-corpo lhe vedou: como a todos nós idem.

 

É isto & mesm’assim.

 

V

 

Prisma a furta-cores, caleidoscópica pandora:

o Dicionário. Mais do que folheá-lo, passeio-o.

Nunca a ele todo verei-terei-lerei, sei-o

bem – mas maravilha vê-tê-lê-lo (& sê-lo) embora.


(...)

VII

 

Buckinghams, Norfolks, Yorkes, Windsors,

Plantagenetas, Saxes-Coburgos-Gothas,

Joanes, Álvares, Teles, Brandões & Tudors:

cambada do carago, hemossugas, agiotas.

 

Flautins, tamborins, pedrinhas-no-sapato,

cubinhos-de-gelo, tremoços, amendoins,

henriques-cardinalícios & os piores priores-do-crato:

anjinhos, arcanjinhos, serafins & querubins.

 

Toda a seita é reunid’aglomerada,

muito chouta impaciente tal manada:

o grão-salão é feito um todo curraleiro.

 

Tirai da môle apenas aquela menina

& vertei por eles bom bidon de gasolina.

Ó Chico, faz-m’um favor & empresta-me o isqueiro.

 

VIII

 

Felizmente não-poucas, obras há que fanais

seguem sendo na senda dos anos dos séculos o mar.

Tenho a sós falado comigo disso entre bar & bar,

ocorrem-me umas um tanto, outras menos ou mais.

 

Como de casa há muito não saio, falo menos

– mas leio mais, pareço perder menos obra.

Tempo, já se sabe, é ouro que não sobra,

hei que aproveitá-lo, questão não de somenos.


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Canzoada Assaltante