68.
MESM’ASSIM
Coimbra,
sexta-feira, 29 de Maio de 2020
I. SONETO DE RIGOR
ANTICALOR
O
calor roubou-me o sono nocturno.
Consigo
adormecer só quando alvorece.
Calor
primitivo, que não arrefece
&
me torna pesado, danado, soturno.
Dormi-perdi
toda a manhã, pecado
que
me não perdoo (nem p’ra lá caminho).
Ao
menos, não deixo o Gatito sozinho,
brinco
às tantas com ele, fica consolado.
Segue-se
o deserto estiolado, vil, inexorável
do
Verão de onze meses ao ano, imperdoável.
Só
por escrito hei neve & gelo & árctico,
só
por escrito refresco ar condicionável,
só
por escrito viver se volve suportável
–
isto é de rigor p’ra mim matemático.
II.
IMAGINAGUAÇÃO – soneto sem os tercetos
Na
mão esquerda de alguém
pôr
dois pedaços de hidrogénio;
depois,
na mão dextra também
um
pedaço de oxigénio.
Pedir-lhe
então que imagine, livre
–
se do produto da imaginação
água
correr, então esse alguém vive
da
poesia a mais solene condição.
III
Fantochada
dos gurus, dos CEO, dos egipt’ovniólogos, dos chnic’americanóides, dos
russ’ucranianos, dos nazi’sionistas, do crist’arabismo, dos católic’aucasianos,
de sermos todos, como espécie, de uma desordem autodesclassificada.
Imagem
do deserto: qualquer cidade.
Pai
do deserto: Verão-Fornalha-Global.
Apocalipse:
é individual, ferrete na testa à nascença de cada um(a).
Rebanhos
bípedes ordeiramente ordenhados nos multicoloridos currais hipercomerciais.
A
ideia de Escola tornada distorção ab ovo.
A
distorção da Justiça enquanto Coerência.
A
Saúde Pública como Produto Privatizável.
O
Fomento da Guerra Local irmanado à Caridade Instantânea da
ONG-mais-perto-de-si.
A
Fábrica de Armamento no Prédio 1 Bloco A & Laboratórios de Pró-Depressivos
no idem idem idem B.
O
Analfabetismo Funcional & o Analfabeto Funcionário.
Jesus
Cristo & Steve Jobs.
Maomé
& a Montanha Parida pela Rata.
Jeová
& Al Capone subornando testemunhas.
A
cloaca crematória de rajás & aiatolas.
Aquilo
da “medicina” tradicional em Vilar de Perdizes.
Josemaría
Escrivá & o Generalíssimo Cancro, perdão, Franco.
A
Opus Dei-Portugal mais à base de minis & tremoços.
Bocejos,
fadiga, fazer café novo, forte, reduzir um bocadinho o número/dia de cigarros,
sair talvez quando for Segunda-Feira-1-de-Junho-do-VinteVinte.
IV
A
subsistência implica não-raro a subexistência. A ovelha sabe-o sem saber que o
sabe. O lobo, sábio, sabe-o. É isto & assim mesmo.
Para
subsistir, fazer como os demais.
Mas
– não dando nas vistas de mais.
Como
quando o Maigret/Simenon vai aos Estados Unidos e vê num sítio a máquina-de-embriagar
ao lado da máquina-de-desembriagar. Bourbon & coca-cola. Vodka &
pepsi-cola. Etc.
Resolvida
(eventualmente) a questão da subsistência, resta o problema, aliás ingente, de
retirar o sub à existência. Conseguiu-o, com tanto dinheiro de royalties,
Simenon? Li as Mémoires Intimes dele: concluí que não, não conseguiu.
Subsistiu, subexistiu. Aquilo do suicídio da filha. Existir, só existe agora –
no futuro que o ex-corpo lhe vedou: como a todos nós idem.
É
isto & mesm’assim.
V
Prisma
a furta-cores, caleidoscópica pandora:
o
Dicionário. Mais do que folheá-lo, passeio-o.
Nunca
a ele todo verei-terei-lerei, sei-o
bem
– mas maravilha vê-tê-lê-lo (& sê-lo) embora.
VII
Buckinghams,
Norfolks, Yorkes, Windsors,
Plantagenetas,
Saxes-Coburgos-Gothas,
Joanes,
Álvares, Teles, Brandões & Tudors:
cambada
do carago, hemossugas, agiotas.
Flautins,
tamborins, pedrinhas-no-sapato,
cubinhos-de-gelo,
tremoços, amendoins,
henriques-cardinalícios
& os piores priores-do-crato:
anjinhos,
arcanjinhos, serafins & querubins.
Toda
a seita é reunid’aglomerada,
muito
chouta impaciente tal manada:
o
grão-salão é feito um todo curraleiro.
Tirai
da môle apenas aquela menina
&
vertei por eles bom bidon de gasolina.
Ó
Chico, faz-m’um favor & empresta-me o isqueiro.
VIII
Felizmente
não-poucas, obras há que fanais
seguem
sendo na senda dos anos dos séculos o mar.
Tenho
a sós falado comigo disso entre bar & bar,
ocorrem-me
umas um tanto, outras menos ou mais.
Como
de casa há muito não saio, falo menos
–
mas leio mais, pareço perder menos obra.
Tempo,
já se sabe, é ouro que não sobra,
hei
que aproveitá-lo, questão não de somenos.
Sem comentários:
Enviar um comentário