22/10/2020

VinteVinte - 84 (integral)

 

84.

 

VI + I SONETOS QUASE LIVRES

 

Coimbra, segunda-feira, 22 de Junho de 2020

 

I

 

É excepção a bondade, de si difere a regra.

Em tempo aflito, não cessa embora a demanda.

Uma arte antiga range & muge, mas não quebra.

Às janelas, colchas ricas vêem o passar da banda.

 

A febre urdia na criança a paciência esperançosa.

Era tépida a água toda Mãe à cabeceira.

A lebre ardia à distância de uma só rosa.

Lírio & delírio parecem hoje brincadeira.

 

Soalho sonoro sob os passos se queixa.

A assimetria tomou conta das janelas.

Tufos de erva rasgam já a calçada.

 

Só tua mesma sombra a ti jamais deixa.

Cortinados novos de estampas singelas.

A regra é tudo; a excepção, quase nada.

 

II

 

Apocalipse é coisa particular, íntima debandada.

É união impossível ao caos alheio.

Dedo no nariz deixa de ser feio.

Toras, alcorões & bíblias fazem ’ma boa queimada.

 

Adriano de bata a mais alva corre o corredor.

Cristina catita adriana-se toda.

’Tadita, é novita, não tem quem na fôda.

De ricas famílias, Adriano é fulgor.

 

De Paddington a Plymouth, antigamente

as moças senhoras iam comboiando.

Alegres viúvas umas, esquálidas outras solteiras.

 

Era pouco casada tal inglesa gente.

Temiam fracamente a Deus protestanteando.

Não é terra de muitas ribanceiras.

 

III

 

Entrepenetram-se sem cansaço os clarões postais.

Ilustram eles o pandemónio mais silencioso.

Parece, o cérebro, estar no gozo.

Aprazíveis vulgaridades como requintes especiais.

 

Gestern und heute – prevê a matrona alemã

que veio ao pão fresco à fresca prima hora da manhã.

Os filhos de Carolina estudam ambos enfermagem.

E o televisor é trémulo dador de imagem.

 

Entre Benavente & Constância houve, certo ano mau,

queda de aves mortas – quem as fulminara?

É circunstância que a notícia ’inda não aclara,

 

tanto tempo passado a remo como a vau.

Progride desenvolta a geral decadência.

Morrer é p’ra todos, viver é que é ciência.

 

IV

 

O futuro é valor abstracto, melhor será não contá-lo.

1986 já foi futuro, como 2000 o foi também.

De azul não surge já vestida, e a cavalo,

Maria dos Anjos Bandeira, dos Bandeiras de Santarém.

 

É hoje menino ainda o psicopata séri’assassino

de VinteVint’e’Nove, matador de mulheres.

Deve dizer-se o talher, não os talheres.

Talvez fôra de matar hoje, já, o menino.

 

O passado é por vezes melhor, depende do agora.

As ideias alheias são países que não visitamos.

E sim, o grande Peter Sellers era chanfrado a sério.

 

Miquelina & Josefina vão, mui mansas, ao cemitério.

Lavam dos pais a campa, José & Maria Ramos.

Depois, muimanamente, vão todos-4 merendar fora.

 

V

 

Os isolados adentro si mesmos existem como podem.

Pugnam por seu estandarte de vela apagada.

Habitam palacianamente a cabana queimada.

De resto, são como os outros, digerem que comem.

 

Prédios, que novos foram, estalam ao sol.

Endurece a lama nas rodas do tractor.

O olvido é o nosso maior detractor.

Se a velha não morre, mudai-lhe o lençol.

 

Traz provisões, Alice, demora-te uns dias.

Agora é Verão p’ra sempre a doer.

Há gelo, há café, conhaque & absinto.

 

Dá cá, eu ajudo com as mercearias.

Pagaste co’ cartão? Há contas a fazer.

Pronto, já me calei, não falo & não minto.

 

VI

 

Exaspera-me, dormindo um pouco, sonhar muito.

Só queria passar por brasas apagadas.

Cerrando os olhos, insuficiências danadas

sonham-me por mim, cansa-me o assunto.

 

Passos falsos claustram-me o sono.

Vejo-me perdido em paul estrangeiro.

As minhas palavras ficam cães-sem-dono.

Só a morte anti-sonha, tal é verdadeiro.

 

A sesta de hoje correu pouco bem.

Gente apareceu, nunca mais bem-vinda.

Ela, culpa não tem, eu sei que não tem

 

– mas é irritante que m’apareç’ainda.

Mais: não adianta tomar medicamentos,

que até c’a droga há tristes momentos.

 

VII

 

Subindo outrora da Praça a Celas p’la Sereia,

saudei Martim Baganha Falcão, seminarista

nado em Celorico da Beira, cuja boa & feia

cara era rosto aprazível, sensível, artista.

 

Muito bons tempos esses, ora no calendário quietos.

Há muito é formado o bom Martim.

Se a mim mesmo me conto entre obsoletos,

a ele não conto, como, sim, me conto a mim.

 

Lá vai ele. Aqui vou eu. Ambos somos do Tempo.

Outrora nos chamamos, Amanhã não sabemos.

Subimos. Vamos. Vimos. Viemos. Já vivemos.

 

(Repetir o terceto, acrescentando descemos.)

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Canzoada Assaltante