06/10/2020

VinteVinte - 70 (tudo)


 

70.

 

ANTES DIZER DESTAS DO QUE DAR EM DOIDINHO

(DEZANOVE QUARTAS + UMA ANTIPARÁSTASE)

 

Coimbra, domingo, 31 de Maio de 2020

 

 

 

I. DEZANOVE QUARTAS

 

Por enquanto não se me ardem livros,

nem olhos que m’os leiam encantados.

Relendo, dou-me dias renovados

da noite mais instante tão cativos.

 

Fora, tudo é cruento, invencível.

Adentro, o panorama é moldável:

em canteiro, refulge a rosa amável;

cimeiro, o cravo d’um escarlate incrível.

 

A vizinha de baixo, carro novo.

O velho do primeiro, só catarro.

Na marquise, eu, fumando o cigarro,

de fora os ares cá por dentro trovo.

 

Coisa rara, mas também acontece,

queimei hoje papéis mal manuscritos.

Já nada dessa origem me aparece,

ninguém me leva ao Senhor-dos-Aflitos.

 

A vida insuportável suportada

em semiatenção aos elementos:

ó antimnésia, ó velha danada,

madrasta de meus mais agros momentos.

 

Q’as amplas agras ágrafas não restem

entant’enquanto uma só janela houver.

Não se é contente porque se tal o quer:

de tolos, tolices se não contestem.

 

Não temo já a falta de empatia,

natural afinal do geral gentio.

Sofro tão-só de saudades do frio,

do estio de só três meses como devia.

 

Vem-se-me calcinand’ a misantropia,

q’envelhecer é ser cada vez menos.

(Não falte o leitinho aos pequenos

& aos asnos sejam dados melhores fenos.)

 

Por festa barafusta a amargura

à testa adusta do mais soliloquaz.

Se encontra só o que se não procura

– é de lei dar em doidinho? É bem capaz.

 

Desmaia hoje o Maio para sempre.

Já Junho bate à porta? Pois que entre.

Os meus Mortos são de Fevereiro a Maio.

Vou amanhã à Cidade – enfim saio.

 

Entra o fim do semestre de repente.

Contado, o Tempo é de causar vertigem.

Felizes os que não sabem nem fingem

saber qu’é do nascer que morre a gente.

 

Filosofia vã? Pois – são todas.

Os mais ateus são padres por negócio.

Inácio, estimo bem que tu te fodas:

é jibóia ao pescoço ou é bócio?

 

De torno à terra materbendita,

ao gasalho do torrão paternatal

– por dentro só me vive tal natural

ter vindo & sido d’ambos minha dita.

 

Dois frates, ambos meus, são já perdidos.

Vou demorando a fila, que eu tenho vez.

Fiz os meus 56 ’inda este mês:

& fiz doze em tempos fementidos.

 

A Lusa-Língua é doce mas idem agraz,

tud’é da ventoinha dada ao verso.

Por rima fazer rir? Também sou capaz

– mas hoje é Dia-Santo, ó perverso!

 

Rés-à-pré-noite, as aves derradeiras

de si despedem volantes instantes.

Pràs bandas da Cidreira, elefantes

trepam às árvores mais cumeeiras.

 

Mentira o que rimo? Pois vinde ver:

olhai, além, roçando já a Geria,

uma manada de pulgas a roer

o atrás-da-orelha à Ti’ Maria.

 

Ó murcha, ó frouxa sorridência Vossa!

Pois Vos não causa riso o morticínio

de, nados, nada sermos, para nossa

holocáustica vez no extermínio?

 

Pois causá-lo – Vo-lo digo – deveria…

Já se me ardem olhos mailos livros:

é do tal atrás-da-orelha, ó Ti’ Maria.

– ’manhã, vou à Cidade ver os Vivos.           

 

II. UMA ANTIPARÁSTASE

(QUASE FURIOSA MAS SÓ QUASE)

 

Quem me dera ter feito o que me imputam

certas aves-não-raras-de-arribação,

dessas que tão mais me filhodaputam

quão menos lhes dou corda & atenção.

 

Tenho em casa um santo: o meu Gato.

Eu soltá-lo-ia a gosto a tais pardais

Mas quê? Merece o meu santinho bem mais

assisada fortuna a meu recato.

 

Os gestos que errei? Restam errados.

Volta não há a dar-lhes, deixá-los ir.

Nossa só é a puta que nos parir

ao recato de matos calcinados.

 

Os restos que papei? Restam papados.

Razão & lei não ’stão todas comigo.

Mas eu sempre te digo, ó meu amigo,

que tens em casa espelhos quebrados.

 

Venha daí perdão nenhum, agoiro!

Vida, dois dias; Carnaval, três – mas quatro

pares de cornos a quem, em mau teatro,

só flecte o joelhinho ao tosão-d’oiro!

 

E ao bezerro-doiro tossegoso

q’excreta tortumelos moralóides!

E ao que tem purulentos adenóides!

E aos que votaram no durão-barroso!

 

Mas agora a sério: tende Vós calma,

tudo isto são só inócuos versíc’los.

Mas s’acaso o caso V. rói d’alma,

calma, passai-m’a alma p’los testíc’los.

 

A sós pranteio só quem me o merece;

d’outros rio calado & ’scarninho.

Rosnam ser por causa do meu mau vinho,

ao que respondo: – Creche, desaparece!

 

Vida, não há ’ma só sem desenganos.

É boa a Morte, passando a limpo

toda a nódoa caída em tais panos

& ’sfregando a fuça a tal Olimpo

 

de semideuses afinal só semi.

Dai-me pois atenção, ouvide-m’ aqui:

ide acusar, primeiro, Vosso espelho

– e só depois dobrai corno & joelho.

 

Entristurar-se um homem, vale a pena?

Se sim, que o seja só por maus motivos,

dos quais alinham uns quantos tristes vivos

– tristes & trastes frustes de pequena

 

mioleira & fraquita memória.

Desses tais não há-de rezar a História.

Nascem, digerem, sofrem gravidezes

– e até quando morrem são soezes.

 

Deus os guarde, mas os resguarde bem longe

da casa de meu Gato principesco.

Rancor, se algum tendes, é simiesco

– ide ser falsa freira ou falso monge

 

p’ra outra capelinha – não prà minha.

(Q’reis saber mote de mi’a glória?

É que, de segunda a sexta, p’la noitinha,

dão Columbo na RTP Memória.)


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Canzoada Assaltante