26/10/2020

VinteVinte - de 1 de Julho de 2020 (V-VIII)


A minha materAvó, Cândida Leite (1903-1994)



V

 

Ainda posso nomes, a meia-adriça a bandeira embora.

É gentil burla minha? É gentil burla minha.

Todavia, tal onomástica é aritmética necessária.

Alfredo, Álvaro, Manuel, Aniceto, Bento, Rui.

 

Não cuido de terem ou não pragmática.

Sirva-se do saber quem puder se quiser.

Eu não doutrino, eu ando em versos perenes.

Donato, Dionísio, Melro, Anselmo, Pietra, Jorge.

 

Ainda não posso morrer, sinto ser cedo o instante.

Outubro me acena adeuses improváveis.

Sediciosa ditadura amoral me não conquista.

Lídia, Luísa, Alberta, Aninhas, Telma, Mafalda.

 

Invocar agora Santa Bárbara é que não.

Na Gare de Austerlitz, vão de garrafão os santos.

Na aldeia ficaram os doentes, os velhos, os pardais.

Hugo, Stephen, Leonard, Leopold, Gil, Ferdinand.

 

Berlim, Roma, Praga, Paris, Sacré-Coeur, a Haia.

Rápida geografia fulmina a sobrevivência do Um.

Comboios na noite varando as estrelas duras.

Castro, João, Gustavo, Boa-Morte, Luiz, Carloto.

 

Recordo o professor de Química-Física debulhando pão.

Era na praça onde a estátua do soldado co’ pretinho ao ombro.

Um azul-piscina amorna-me a recordação.

Amaro, Quiroga, Quintana, Benedito, Falcão.

 

Emulando os passos decisivos alheios vingo.

Não copiando porém, isso é que nunca.

É meu o catálogo civil; minha a nau-dos-corvos.

Raquel, Filomena, Mesta, Bárbara, Dinamene.

 

(VI)

 

(É certo que perdi ósculos, os óculos porém não.

Demorei-me apreciando a pomba sobre ardósia escura.

Beijei-a de cerrados lábios em ideia grata.

Idioma nos envolve, pátria de dois por oscular.)

 

VII

 

Um rasto de crimes & agonias infesta o exterior.

Até crianças são mortas por exacta razão nenhuma.

Nada de ninguém ao-volante-do-chevrolet-pela-estrada-de-Sintra.

Nada de ninguém em-Pessoa.

 

É menos difícil quando se recupera alguma música.

Só tem de aceitar-se que se é a sós a própria voz.

Uma refeição ingerida na sobreloja de Bernardo sem Bernardo.

Casebres sem janelas tornam bicharoca a gentalha.

 

Sim, crianças mortas à porrada por subgente (ins)ciente.

Ainda ontem me documentaram o Heydrich nazi.

Portugal parece – mas não é – mais manso.

Aqui, a violência é consagrada a maculados corações.

 

As televisões rejubilam de paroquiana euforia.

O sangue provinciano é a droga delas.

Tóxica corja de mirones vorazes rapazes rapaces.

Enodoado glaucoma da grei peregrin’andarilha.

 

(...)


 

VIII

 

Faria hoje anos a senhora Cândida Leite.

Falta-me uma mão de anos para ser da idade

que era a dela quando nasci à luz d’azeite

da filha dela, Mãe minha, nesta cidade.

 

Faria mas não faz, deixá-la dormir.

Defuntos somos todos garantidos à nascença.

Ser neto é-me trabalho que descompensa

a tença que é nascer sem ser p’ra rir.

 

Recordo-a de luto perpétuo pelo marido,

feroz cão-de-quinta p’ra consumição da casa.

Avó-ave de perene quebrada asa,

veio por esquecimento & partiu por o olvido.

 

Nonagenária, ainda assim, quando se foi.

Eu gostava do riso dela, de velha infanta.

Nada enfim lhe custa já, já nada lhe dói.

Estive há tempo junto à sua campa:

 

águia perfilada me semelhou, não altaneira

porém, antes humílima, não de rapina.

Difícil não ver nela a mesma menina

que filha dela foi - & minha Mãe inteira.

 

Lá dormem ambas em próximos chãos.

Os maridos também – como se irmãos.

Um-de-Julho, cândida Cândida, parabéns.

A sós & em sossego, nem ossos nem cães.

 

Nós por aqui, todos bem.

(Ou não – mas não faz mal.

Cada um só consigo é alguém.

Quarta-feira, 1 de Julho; Coimbra, Portugal.)

 

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Canzoada Assaltante