21/10/2020

VinteVinte - 83 (só IV & V)




83.

 

MURAR & MORAR

 

Coimbra, domingo, 21 de Junho de 2020

 

(...)




IV

 

Ele tinha casa com quintal, tudo bem murado & morado. Da rua, só podia ver-se alguma coisa pelo portão alto de bom ferro esmaltado a verde-noite quando aberto: laranjeira, figueira, macieira, quatro pereiras-de-inverno, horta, poço, barraco de madeira para alfaias, provisões secas, vinho, almanaques, ferramentas, arcas misteriosas. Eu cumprimentava-o sempre, que me saudava sempre de retorno. Era um gentil velho, sábio, suficiente & auto-suficiente. Foi feliz duas vezes & infeliz outras tantas: viúvo uma vez, esperou não sê-lo segunda. Foi-o. Amou em cada mulher a pessoa que cada uma era. Comparação nenhuma fez. Viu-se sozinho, não tentou terceira-volta. Aceitou a solidão cultivando o quintal, reparando as pequenas coisas que fazem grande uma casa. Sem parentes sequer remotos, fez-me seu herdeiro. O engraçado é que envelheci mais depressa do que ele, pois ele era daquele tipo de pessoa que, a uma idade chegada, dela já só sai quando levada em tábuas por quatro. Veio aquele Maio, ele morreu, levaram-no. O advogado tratou-me dos precisos. Ainda não tomei casa nem quintal. Espero que a minha mulher morra primeiro – aquela é uma morada propícia só à viuvez, não à ronceira felicidade dos acompanhados.

 

(V)

 

(Compete à Imaginação ser pródiga a si mesma.

Imagens ela se deve em fortuna & catadupa.

Magro, o dito Real não vale a baba da lesma.

Amargo, o Pão-da-Boca não se vale desculpa.)

 

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Canzoada Assaltante