30/10/2020

VinteVinte - 94 (tesourado)


© DA – Coimbra, Bota Abaixo, às 9h33m54s de 22 de Julho de 2020





94.

 

PERMANENTE BANHO-MARIA

 

Coimbra, domingo, 5 de Julho de 2020

 

(I)

 

(O rosto de John Hurt.

O rosto de Ian Holm.

O rosto de Harry Dean Stanton.

Tenho-os a meu dispor, na matinée doméstica.

(...).)

 

II

 

O comboio desloca-se a tantos, quilómetros à hora em espaço/tempo. Numa das carruagens, a mosca voa a uma velocidade própria em espaço alternativo. Quatro dimensões em continuidade aberta a soluções. Assim, em corpo fisicamente finito, a memória parece infinita, urdindo ficção sobre o suposto Real – presente, pretérito e/ou futuro.

 

III

 

Carlos João Romantiga fez, a partir da Alemanha, viagens hoje quase esquecidas – se não ignoradas mesmo – a Espanha, Holanda, México & Itália. Edificou, para si & seus, segura fortuna no ramo da navegação mercante. O bolo fundamental está entesourado na ínvia Suíça, mormente Zurique. Não é em vão que Romantiga continua a ser designado por O Almirante-da-Mercante. É lendária a sua elegância altaneira; inimitável, o seu atavio vestimental; rutilante, o ruivo ígneo da cabeleira, que ao encanecimento pouco cede.

Tem obra patrimonial no âmbito da filantropia social. Antes de investir, por cá, em Viana do Castelo, Leixões, Figueira, Peniche & Lagos, associou-se a projectos de habitação operária de renda mínima ou nenhuma, conforme a situação de actividade laboral dos inquilinos admitidos. É sócio-emérito de diversas associações xadrezísticas do nosso litoral.

Do resto, é infinito de que mui pouco consta. Casou-se uma vez só – e para sempre. É pai há quarenta anos & avô há dezassete. Talvez seja natural de Penamacor – mas não há maneira de demonstrá-lo inequivocamente. É ele o primeiro a não ajudar. ~

 

IV

 

Em espécie de permanente banho-maria, por assim dizer, o pensamento abria constantes referências indexadas ao património. Manutenção & vigência da casa. Colheita exterior de elementos nutrientes. Manufacturação interior de cadernos capazes de, por assim dizer, diariodebordar a travessia.

No corrente Domingo, por exemplo instante, assim é tal-qual. Há bolo no forno. Os pardais foram alimentados. O próprio corpo foi à banheira desescamar-se. Água mineral gaseificada marulha sistem’adentro. Café bastante até ao entardenoitecer. Epistolografia de V. Van Gogh em pousio.

Ontem, sol em Vigo. Hoje, sol em Bilbao. Em 1979, aqueles rostos de que V. falei – mais o de Sigourney Weaver.

 

V

 

Hei notícia também de Caio Jerónimo Trajano Iroquez, que tinha nascido havia cinco anos quando a família se mudou de Bucelas para Coimbra. Era o ano 1938. Deu entrada na universidade aos dezassete anos, saiu dela médico com vinte e três. Praticou sempre nesta cidade. Poucos (muito poucos) sabiam ser ele quem se ocultava nos bastidores do pseudónimo plumitivo Germano Cruz Carreira, o esquecido autor de Volúpia Ibérica, de Samaritana Arrependida e Apóstata, de Entre Douro e Linho & de, já depois do 25, Ou Império ou Merda Alguma.

Era homem de pequena volumetria. Nunca retornou, nem por curiosidade nem por outra qualquer forma de interesse, a Bucelas. Morreu sem filhos, sem mulher & nesta página mesma.

 

(VI)

 

(E vou avançando vida pelas cartas de V. a seu irmão T. Aqui – até por se tratar das palavras de um pintor, ler é ver. Vou pelos olhos do grande Holandês. A fortuna só foi dele pela obra deixada, não pela riqueza que tantos fazem à custa da sua miséria voluntariosa. Mas a Obra…)


 

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Canzoada Assaltante