© DA – Coimbra, Bota Abaixo, às 9h33m54s de 22 de Julho de 2020
94.
PERMANENTE BANHO-MARIA
Coimbra, domingo, 5
de Julho de 2020
(I)
(O
rosto de John Hurt.
O
rosto de Ian Holm.
O
rosto de Harry Dean Stanton.
Tenho-os
a meu dispor, na matinée doméstica.
(...).)
II
O
comboio desloca-se a tantos, quilómetros à hora em espaço/tempo. Numa das
carruagens, a mosca voa a uma velocidade própria em espaço alternativo. Quatro
dimensões em continuidade aberta a soluções. Assim, em corpo fisicamente
finito, a memória parece infinita, urdindo ficção sobre o suposto Real –
presente, pretérito e/ou futuro.
III
Carlos
João Romantiga fez, a partir da Alemanha, viagens hoje quase esquecidas – se
não ignoradas mesmo – a Espanha, Holanda, México & Itália. Edificou, para
si & seus, segura fortuna no ramo da navegação mercante. O bolo fundamental
está entesourado na ínvia Suíça, mormente Zurique. Não é em vão que Romantiga
continua a ser designado por O Almirante-da-Mercante. É lendária a sua
elegância altaneira; inimitável, o seu atavio vestimental; rutilante, o ruivo
ígneo da cabeleira, que ao encanecimento pouco cede.
Tem
obra patrimonial no âmbito da filantropia social. Antes de investir, por cá, em
Viana do Castelo, Leixões, Figueira, Peniche & Lagos, associou-se a
projectos de habitação operária de renda mínima ou nenhuma, conforme a situação
de actividade laboral dos inquilinos admitidos. É sócio-emérito de diversas
associações xadrezísticas do nosso litoral.
Do
resto, é infinito de que mui pouco consta. Casou-se uma vez só – e para sempre.
É pai há quarenta anos & avô há dezassete. Talvez seja natural de Penamacor
– mas não há maneira de demonstrá-lo inequivocamente. É ele o primeiro a não ajudar.
~
IV
Em
espécie de permanente banho-maria, por assim dizer, o pensamento abria
constantes referências indexadas ao património. Manutenção & vigência da
casa. Colheita exterior de elementos nutrientes. Manufacturação interior de
cadernos capazes de, por assim dizer, diariodebordar a travessia.
No
corrente Domingo, por exemplo instante, assim é tal-qual. Há bolo no forno. Os pardais
foram alimentados. O próprio corpo foi à banheira desescamar-se. Água mineral
gaseificada marulha sistem’adentro. Café bastante até ao entardenoitecer. Epistolografia
de V. Van Gogh em pousio.
Ontem,
sol em Vigo. Hoje, sol em Bilbao. Em 1979, aqueles rostos de que V. falei –
mais o de Sigourney Weaver.
V
Hei
notícia também de Caio Jerónimo Trajano Iroquez, que tinha nascido havia cinco
anos quando a família se mudou de Bucelas para Coimbra. Era o ano 1938. Deu entrada
na universidade aos dezassete anos, saiu dela médico com vinte e três. Praticou
sempre nesta cidade. Poucos (muito poucos) sabiam ser ele quem se ocultava nos
bastidores do pseudónimo plumitivo Germano Cruz Carreira, o esquecido autor de Volúpia
Ibérica, de Samaritana Arrependida e Apóstata, de Entre Douro e
Linho & de, já depois do 25, Ou Império ou Merda Alguma.
Era
homem de pequena volumetria. Nunca retornou, nem por curiosidade nem por outra
qualquer forma de interesse, a Bucelas. Morreu sem filhos, sem mulher &
nesta página mesma.
(VI)
(E
vou avançando vida pelas cartas de V. a seu irmão T. Aqui – até por se tratar
das palavras de um pintor, ler é ver. Vou pelos olhos do grande
Holandês. A fortuna só foi dele pela obra deixada, não pela riqueza que tantos
fazem à custa da sua miséria voluntariosa. Mas a Obra…)
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