12/10/2020

VinteVinte - 77 (só do III ao final VIII, o resto fica para depois, em papel)



77.

 

RETENÇÃO DE MIASMAS

 

Coimbra, quinta-feira, 11 de Junho de 2020 (I-II)

Coimbra, sexta-feira, 12 de Junho de 2020 (III-VIII)



(...)


III

 

Alimentadas já as aves pelas horas primas da luz nova, o nome que se me depara é o do egiptólogo francês Pierre Montet (1885-1966). Formigou & toupeirou muito, de Byblos a Tanis, conheceu Alexandria & o Cairo. Sulcou seu mesmo deserto – como afinal cada um por cada qual. Obeliscos, colossos, estelas, arquitraves, estátuas & estatuetas, colunas – escrita pedregosa da estagnação do Tempo. Que sobra de obra?

 

(IV)

 

(Pensemos no 14 de Setembro de 1822, sábado.

Roseta, triplamente mágica.

Campeão Champollion: hieroglífico, demótico, grego.

Imagens de mundos interioríssimos.

Ideografia vs. Fonética.

Gato.

Lettre à M. Dacier

Relative à l’Alphabet

Des Hiéroglyphes Phonétiques.)

 

V

 

De fundas caves manam miasmas mortíferos,

o sol é porém aurífero nas afinal brandas pedras,

hipóstila resistência ao boi temporal,

mochos-cães, águias-térmitas, noite-ó-mãe,

asnos & sábios, escravos & príncipes,

astrolábios, favos, primícias.

Imaginação por galerias, a velhice aos trint’anos.

Serenidade possível entre farrapos, taças,

amuletos, estiletes, ruínas, pardais fossilizados,

anotações infinitas, pouco tempo para amanhã,

chá com biscoitos de aveia & canela, nata, tomate,

conquistas faraónicas, rudes campanhas felizes.

1790-1832. Tão pouco-nada, Champ.

Pestiferamente nosso.

E o obelisco é subido a 25 de Outubro de 1836, terça-feira.

 

(VI)

 

(Reter o relâmpago.

Sim, a 2 de Setembro de 1882, sábado.

Sejamos gratos ao fotógrafo

William N. Jennings.)

 

VII

 

David & Roberto, filhos maior & menor de Jonas & Ângela. O primeiro concebeu de si uma carreira profissional segura, próspera, imbatível, discreta embora. O segundo foi neurodoente toda a vida, que terminou após a viagem da janela do segundo-andar para o átrio da instituição em que estava internado havia duas décadas.

David sobreviveu quarenta & dois anos ao irmão. Algumas vezes a tristeza o apertou a sério. Não lhe aconteceu – senão até tarde na vida – acertar companheira decente.

Especulação pode sempre ser feita a propósito seja de que for. Estas linhas não embarcam nisso, não no concernente a David. A Roberto, muito menos. Factos: David amou & protegeu o seu irmão-benjamim; suportou ele as despesas muito significativas do muito prolongado internamento do doente; jamais revelou sequer sombra de pormenor quanto ao verdadeiro motivo do desequilíbrio de Roberto. Jonas morreu impune. Cúmplice por silêncio tácito, Ângela também.

 

VIII

 

A minha certeza é relativa à possibilidade de alguma permanência. Não-perene, não-definitiva: tão-só alguma por algum tempo de alguma coisa.

Uma estátua de imitação greco-romana em jardim de mansão há muitas gerações desertada. Quem a viu, quem a afagou até, é perdido aos anos não-contados.

Estas linhas almejam (ou alvejam) um resquício de duração: da estátua como de ignoto alguém mir’afagando-a.

A oficina estatuária de que, por encomenda expressa, proveio a peça – conheço-a bem mas só na lembrança, pois que foi encerrada para sempre pelos ávidos herdeiros do mestre. O cliente rico obsequiou a esposa, fê-la crer que era Vénus mesma oferecendo-lhe aquele mármore torneado à maneira dos Antigos.


 

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Canzoada Assaltante