09/10/2020

VinteVinte - 74 (completo)


Desenho feito pelo senhor meu Pai quando tinha 13 anos
(circa 1930, portanto)



74.

 

UMA DESSAS COISAS

 

Coimbra, sexta-feira, 5 de Junho de 2020 (I-II)

Coimbra, sábado, 6 de Junho de 2020 (III-V)

Coimbra, domingo, 7 de Junho de 2020 (VI)

 

 

 

 

 

I

 

Depois das seis horas, já bem radiante a alva, continua comovedor o assistir da torre da marquise aos meus pardais comendo do pão desta casa. Lá anda bando deles no telhado das garagens: pão & arroz com fartura, que só lhes é difícil escolher que bocado abocar. É muito bonito, o meu local-Portugal-pardal. Do lado direito, um muro separa, na colina, dois chãos arborizados: no mais oriental, distingo, rés-solo, 4-melros-4, nem menos. Catam a tarde & o panasco. Pequeno-almoço para a geral alada-volante. Nigérrimos – e, por bico-boca, um pingo de oiro.

Amo esta penada animália. É a minha hora mais franciscana. Sinto-me moço. Daqui a pouco, atulhado já de café & de resina tabacosa, serei como os outros do meu ramo de negócio. Mas agora não. Agora, alto deus de pardais & melros, provedor do alimento de cada madrugada, sinto-me principesco, régio até – mas sem gaspar-simões nem branquinho-da-fonseca, por assim dizer.

 

II

 

A actriz era já antiga quando foi tema de uma rubrica televisiva. Revisitou a carreira de tantas décadas, mostrou o dentro de sua casa ao estimado-público. Foi a marlene possível. O tal programa de TV é, ele-próprio, uma relíquia já. Ainda elegante, a senhora. Uma estatueta do Padre Cruz na cómoda. Figura de um século extinto, extinta ela-mesma também já, agora que a reconto.

 

III

 

Novo dilúculo, sabatino agora.

Esta roda de dias só finda com o corpo.

Também só nele - & por ele – começa.

Não pretendo ir-me já embora.

Tempo há que isto dará para o torto.

Nada me seja dado que eu peça.

 

Espero tão-só os pardais diluculares.

Furtivo, o melro; rápida, a rôla.

As pombas são os polícias voadores.

A vista alcança não-contados hectares.

Viver ainda é acordar para a escola:

faço de contínuo; os dias, de professores.

 

IV

 

O Mundo & eu vamos variando para pior.

Raças, racismos, economias, tráficos, ideologias:

merda, merda, merda, merda, merda.

A Sociedade é infame por regra, não por excepção

– assim é cada dia.

Pessimismo meu? Mais objectivismo me parece.

Misantropia minha? Sou correspondido.

Palavra-da-salvação.

 

V

 

Vai meã a manhã.

Sábado, baixei os estores, protejo a hora.

Gostaria de escutar que chovesse.

Dói-me o braço-esquerdo, não sei porquê.

Algum mau-jeito, talvez.

A dormir, não foi – não preguei olho.

Ocupei a cozinha, atirei pão & arroz às aves.

Café-com-leite, pão-com-manteiga.

Depois cigarro & Madame de Sévigné.

Sossego, hora boa.

Depois a manhã amadurece, a si mesma se rouba.

Não tarda, é noite.

 

Penso em Orson Welles, não sei porquê.

E em John Cassavetes & Peter Falk.

Excelente trio, artistas inteligentes, todos o dizem.

E eu acredito.

Ocorre-me também outra galeria:

Henrique do Louriçal, Duarte de Peniche, António de Taveiro.

Balconistas inteligentes, eles também.

Em casa, pensando sem esforço, deixando (o)correr o rio.

Não importa, confiar & confinar são diversas coisas.

Isto é ilha, viver, viver é ser ilhéu.

Já a noite permeou tudo, cúpida.

Pouco trânsito na via-rápida, insípida.

 

VI

 

Muito antes das seis, ’inda. Na cozinha & por dentro das afeições epistolares da Senhora de Sévigné, com o Senhor Menino Gato. Última fatia de bolo & primeira taça de café. Distraio-me no século XVII – quando reergo o olhar, já a marquise se plasma, dúbia, em mescla de azul-tinta & azul-giz: a Aurora, a Bem-Dita. Pão mole & arroz cozido em branco: porções já moram, que as arremessei, no telhado das garagens. Espero a laboriosa passarada. Faltam ’inda catorze para as seis, nem dei por ter passado tanto minuto de, há mais de hora & picos, me haver desleitoado, por assim dizer.

 

(Habitação & habituação: mecanismos processadores de vivência & sobrevivência – isto parece-me acertado, para lá do aspecto lúdico-vocabular.)

 

É oficial:

 

Às 5h59m, o primeiro melro abicou & abocou o primeiro dos pedaços do ex-meu pão. Voltará ele para a sobremesa de arroz? Assim o espero. Pardais, ’inda nenhum.

 

Aroma & eflúvio: o ar-fresco pela frincha da vidraça-corredora da marquise. Mais a outra marquise, a de Sévigné, que me abre, inicial & iniciático de novo, o primeiro dia do Ano 1672 d.C., que foi uma sexta-feira.

 

“Deram” ontem, para hoje, temperatura moderada & ocasionais aguaceiros. Espero que assim seja: é esse o tempo que, albergado, agasalhado & gasalhado, sobremaneira me apraz desde menino. Caloraça de forno-crematório? Odeio, não a quero. Moderação meteorológica à beira do friinho – ah sim, venga ela!

 

É oficial:

 

Ao primeiro quarto das seis, já a pardalada se faz orizífaga & panipapona, por assim dizer.

De novo, melro. Um casalito-pardalito ao mesmo tempo. Depois, ninguém. Iço o olhar: três milhafres patrulham baixo, assustam-me a freguesia. São muito belos também, tais rapazes, perdão, tais rapaces – mas nada vegetarianos. Comigo não fazem farinha, pois.

 

Não me parece má filosofia dar por remediado o que não tem remédio, em conformidade com a sabença popular. Como o sono não vem, liguei a luz, escrevinho isto sem pressa nem demora. Veio-me à pantalha mental, em moção quieta, certa galeria mostruária de certos objectos que, tendo sido de meu Pai, dele semelham prolongar a existência. Alguns desses objectos, de fim utilitário, eram manufeitos por ele. Não os possuo senão na ideia. Ele guardava as coisas. Hoje, é-me possível dizer, sem risco de inverosimilhança ou de lirismo lamechas, assim:

Ele guardava-se nas coisas.

Agrada-me pensar que sou, sem remédio, uma dessas coisas.

 


 

Sem comentários:

Canzoada Assaltante