74.
UMA DESSAS COISAS
Coimbra,
sexta-feira, 5 de Junho de 2020 (I-II)
Coimbra, sábado, 6
de Junho de 2020 (III-V)
Coimbra, domingo, 7
de Junho de 2020 (VI)
I
Depois
das seis horas, já bem radiante a alva, continua comovedor o assistir da torre
da marquise aos meus pardais comendo do pão desta casa. Lá anda bando
deles no telhado das garagens: pão & arroz com fartura, que só lhes é
difícil escolher que bocado abocar. É muito bonito, o meu
local-Portugal-pardal. Do lado direito, um muro separa, na colina, dois chãos
arborizados: no mais oriental, distingo, rés-solo, 4-melros-4, nem menos. Catam
a tarde & o panasco. Pequeno-almoço para a geral alada-volante. Nigérrimos
– e, por bico-boca, um pingo de oiro.
Amo
esta penada animália. É a minha hora mais franciscana. Sinto-me moço. Daqui a
pouco, atulhado já de café & de resina tabacosa, serei como os outros do
meu ramo de negócio. Mas agora não. Agora, alto deus de pardais & melros, provedor
do alimento de cada madrugada, sinto-me principesco, régio até – mas sem
gaspar-simões nem branquinho-da-fonseca, por assim dizer.
II
A
actriz era já antiga quando foi tema de uma rubrica televisiva. Revisitou a
carreira de tantas décadas, mostrou o dentro de sua casa ao estimado-público.
Foi a marlene possível. O tal programa de TV é, ele-próprio, uma
relíquia já. Ainda elegante, a senhora. Uma estatueta do Padre Cruz na cómoda.
Figura de um século extinto, extinta ela-mesma também já, agora que a reconto.
III
Novo
dilúculo, sabatino agora.
Esta
roda de dias só finda com o corpo.
Também
só nele - & por ele – começa.
Não
pretendo ir-me já embora.
Tempo
há que isto dará para o torto.
Nada
me seja dado que eu peça.
Espero
tão-só os pardais diluculares.
Furtivo,
o melro; rápida, a rôla.
As
pombas são os polícias voadores.
A
vista alcança não-contados hectares.
Viver
ainda é acordar para a escola:
faço
de contínuo; os dias, de professores.
IV
O
Mundo & eu vamos variando para pior.
Raças,
racismos, economias, tráficos, ideologias:
merda,
merda, merda, merda, merda.
A
Sociedade é infame por regra, não por excepção
–
assim é cada dia.
Pessimismo
meu? Mais objectivismo me parece.
Misantropia
minha? Sou correspondido.
Palavra-da-salvação.
V
Vai
meã a manhã.
Sábado,
baixei os estores, protejo a hora.
Gostaria
de escutar que chovesse.
Dói-me
o braço-esquerdo, não sei porquê.
Algum
mau-jeito, talvez.
A
dormir, não foi – não preguei olho.
Ocupei
a cozinha, atirei pão & arroz às aves.
Café-com-leite,
pão-com-manteiga.
Depois
cigarro & Madame de Sévigné.
Sossego,
hora boa.
Depois
a manhã amadurece, a si mesma se rouba.
Não
tarda, é noite.
Penso
em Orson Welles, não sei porquê.
E
em John Cassavetes & Peter Falk.
Excelente
trio, artistas inteligentes, todos o dizem.
E
eu acredito.
Ocorre-me
também outra galeria:
Henrique
do Louriçal, Duarte de Peniche, António de Taveiro.
Balconistas
inteligentes, eles também.
Em
casa, pensando sem esforço, deixando (o)correr o rio.
Não
importa, confiar & confinar são diversas coisas.
Isto
é ilha, viver, viver é ser ilhéu.
Já
a noite permeou tudo, cúpida.
Pouco
trânsito na via-rápida, insípida.
VI
Muito
antes das seis, ’inda. Na cozinha & por dentro das afeições epistolares da
Senhora de Sévigné, com o Senhor Menino Gato. Última fatia de bolo &
primeira taça de café. Distraio-me no século XVII – quando reergo o olhar, já a
marquise se plasma, dúbia, em mescla de azul-tinta & azul-giz: a Aurora, a
Bem-Dita. Pão mole & arroz cozido em branco: porções já moram, que as
arremessei, no telhado das garagens. Espero a laboriosa passarada. Faltam ’inda
catorze para as seis, nem dei por ter passado tanto minuto de, há mais de hora
& picos, me haver desleitoado, por assim dizer.
(Habitação
& habituação: mecanismos processadores de vivência & sobrevivência –
isto parece-me acertado, para lá do aspecto lúdico-vocabular.)
É
oficial:
Às
5h59m, o primeiro melro abicou & abocou o primeiro dos pedaços do ex-meu
pão. Voltará ele para a sobremesa de arroz? Assim o espero. Pardais, ’inda
nenhum.
Aroma
& eflúvio: o ar-fresco pela frincha da vidraça-corredora da marquise. Mais a
outra marquise, a de Sévigné, que me abre, inicial & iniciático de
novo, o primeiro dia do Ano 1672 d.C., que foi uma sexta-feira.
“Deram”
ontem, para hoje, temperatura moderada & ocasionais aguaceiros. Espero que
assim seja: é esse o tempo que, albergado, agasalhado & gasalhado,
sobremaneira me apraz desde menino. Caloraça de forno-crematório? Odeio, não a
quero. Moderação meteorológica à beira do friinho – ah sim, venga ela!
É
oficial:
Ao
primeiro quarto das seis, já a pardalada se faz orizífaga & panipapona, por
assim dizer.
De
novo, melro. Um casalito-pardalito ao mesmo tempo. Depois, ninguém. Iço o
olhar: três milhafres patrulham baixo, assustam-me a freguesia. São muito belos
também, tais rapazes, perdão, tais rapaces – mas nada vegetarianos. Comigo não fazem
farinha, pois.
Não
me parece má filosofia dar por remediado o que não tem remédio, em conformidade
com a sabença popular. Como o sono não vem, liguei a luz, escrevinho isto sem
pressa nem demora. Veio-me à pantalha mental, em moção quieta, certa galeria
mostruária de certos objectos que, tendo sido de meu Pai, dele semelham
prolongar a existência. Alguns desses objectos, de fim utilitário, eram
manufeitos por ele. Não os possuo senão na ideia. Ele guardava as coisas. Hoje,
é-me possível dizer, sem risco de inverosimilhança ou de lirismo lamechas,
assim:
Ele
guardava-se nas coisas.
Agrada-me
pensar que sou, sem remédio, uma dessas coisas.
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